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A cultura do cancelamento está crescendo em um ritmo tão veloz que hoje é comum eu só tomar conhecimento de uma celebridade quando a mídia divulga que ela foi cancelada. Não deixa de ser irônico que o cancelador acabe, assim, promovendo e divulgando o cancelado que ele pretendia prejudicar.

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Por exemplo, eu nunca tinha ouvido falar da MC Pipokinha, mas me deparei hoje cedo com o grande destaque dado à notícia de que sua participação em um festival de música, o Spotted Fest, foi cancelada em função de supostos ataques da artista aos professores.

(Parêntesis: no mais das vezes, minha reação espontânea aos canceladores é de nojo puro e simples. Canceladores são em geral pessoas covardes, moralmente invertebradas, sem brilho próprio, movidas pelo ressentimento; pessoas cujo único prazer na vida é apontar o dedo para os outros – mas até isso elas fazem de forma torpe, porque se unem e se escondem em matilhas nas quais a responsabilidade individual se dilui. Em suma, um bando de infelizes recalcados, dos quais só quero distância.)

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Voltando à Pipokinha. Em uma nota lacradora, no habitual tom de tribunal inquisitorial de quem se julga portador do monopólio do bem, a organização do festival fez o que costumam fazer os canceladores: botou o dedo na cara da desconvidada e aproveitou para exaltar a própria virtude, afirmando “não compactuar” com a moça:

Quem lê a nota pode pensar: “Ah, mas, realmente, atacar a classe dos professores é um comportamento com o qual ninguém pode concordar”.

Certo, isso é óbvio. Mas qual teria sido mesmo o teor desses ataques?

Pois bem, a polêmica aconteceu porque a Pipokinha escreveu o seguinte, respondendo a um fã no Instagram:

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"Ser professora tem que amar muito a profissão, porque ouve desaforo dos filhos dos outros (...) E ainda receber o que um professor recebe, que é quase nada. Professor é humilhado pra c... só de ser um professor. (...) Meu baile está R$ 70 mil: 30 minutinhos no palco, eu ganho R$ 70 mil. Ela não ganha nem R$ 5 mil sendo professora, às vezes. Precisa estudar muito"

Está faltando amor no mundo, mas também está faltando interpretação de texto. Me parece claro que a mensagem da postagem de Pipokinha foi: “Professor no Brasil não é valorizado, tem que estudar muito, aturar filho dos outros, ganhar mal etc. Enquanto eu ganho 70 mil reais em meia hora para cantar músicas estúpidas”.

Pelo menos foi assim que eu entendi. É, no mínimo, uma interpretação possível. Mas a narrativa unânime do tribunal sumário da mídia foi: “MC Pipokinha debocha dos professores”, “MC Pipokinha ataca professores” etc. E tome linchamento: só faltou chamar a cantora de criminosa e pedir ao STF para tomar providências imediatas e abrir um inquérito secreto – ou pedir aos parlamentares para criar a CPI da Pipokinha.

E tome linchamento: só faltou chamar a cantora de criminosa e pedir ao STF par abrir um inquérito – ou pedir aos parlamentares para criar a CPI da Pipokinha

Mas o fato é que a Pipokinha apenas afirmou a verdade óbvia de que, no Brasil, a classe dos professores não é valorizada. Ora, no nosso país é realmente muito mais vantajoso economicamente ser cantora de funk – ou, aliás, jogador de futebol, como Daniel Alves, que talvez ganhasse em um mês mais do que eu vou ganhar a vida inteira como jornalista – do que ser professor.

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Uma rápida pesquisa no Google informa que a Pipokinha vem de uma família humilde de Capivari, no interior de Santa Catarina. Filha adotiva, ela engravidou aos 15 anos, quando estava no ensino médio. Aos 19, foi para São Paulo, onde morou de favor em casas e bares. Não deixa de ser uma história de superação que hoje, aos 23, ela ganhe R$ 70 mil por cada show de meia hora. Passei a simpatizar com a moça.

Veja bem, leitor. Do pouco que vi e ouvi da cantora no Youtube para escrever este artigo, a obra da Pipokinha é medíocre, com letras grosseiras e sexualmente explícitas, algumas de fazer corar um dono de bordel. Um de seus hits se chama “Bota na Pipokinha” – e já teve quase 30 milhões de visualizações no Youtube.

(A letra é 90% assim: “Bota na Pipokinha/ Bota na, bota na Pipokinha/ Bota na Pipokinha/ Bota na, bota na Pipokinha/ Bota na, bota na, bota na/ Bota na, bota na, bota na/ Bota na, bota na, bota na/ Bota, bó, bó, bó, bó, bó, bó/ Bota na Pipokinha”. Os outros 10% são impublicáveis.)

Baixo nível? Sim, mas e daí? Não é este exatamente o tipo de manifestação cultural que é exaltada o tempo inteiro na mídia – e também nas salas de aula – como autêntica cultura popular e representativa, que exalta a bunda e empodera as mulheres? Pois é.

Professores ensinam ano após ano aos seus alunos que o funk e Beethoven se equivalem, ou que uma letra da Anitta tem tanto valor quanto um poema de Drummond

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Ora, o sucesso e a própria existência da MC Pipokinha – e de outras funkeiras mais famosas – são explicados, em alguma medida, pela ação de muitos professores que, ano após ano, ensinam aos seus alunos que o funk e Beethoven se equivalem, ou que uma letra da Anitta tem tanto valor estético quanto um poema de Drummond, e que as mulheres que rebolam a raba são as mais empoderadas.

Assim se formam o gosto musical e o padrão moral de uma nação. As consequências a gente vê depois. Aliás, não faltam monografias e teses de Mestrado e Doutorado que tratam o funk como o supra-sumo da cultura nacional, realçando sua estética transgressora e seus corpos dissidentes.

Uma dessas monografias, aliás, virou um livro muito elogiado, Cai de boca no meu b*c3t@o: O funk como potência do empoderamento feminino (Claraboia, 2021), por demonstrar como “um dos movimentos culturais mais importantes do Brasil também é um potencializador da liberdade, da autonomia e do empoderamento da mulher”.

Mas, em muitos casos, essa exaltação toda da periferia pelos intelectuais progressistas só vai até a página 10. Quando esses artistas periféricos ousam ter opinião própria sobre determinados assuntos e deixam de servir à agenda lacradora, são imediatamente enquadrados, ou mesmo expelidos pelo mesmo sistema que os promove. É o que pode estar acontecendo com a MC Pipokinha.

(Se tiverem votado no candidato errado, então, a carreira acabou. Porque o amor venceu, e quem não contribuiu para a vitória do amor tem mais é que ser perseguido e esfolado em praça pública, sem anistia, para aprender a votar direito.)

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Fato é que o mundo está tão chato e a censura "do bem" está tão pesada que as pessoas normais estão simplesmente deixando de se manifestar nas redes sociais, para evitar aborrecimentos.

Como disse Chris Rock no especial “Indignação seletiva”, da Netflix: "Antigamente, quando alguém queria roubar seu emprego, esforçava-se mais do que você. Hoje ele apenas espera você falar uma merda, para te pegar em alguma armadilha woke".