Segunda parte da entrevista com Gabriel Giannattasio, professor do Departamento de História da UEL – Universidade Estadual de Londrina, que acaba de lançar “O livro proibido – Totalitarismo, intolerância e pensamento único na Universidade”. Giannattasio fala aqui sobre a influência de Trotsky e Marcuse no ambiente de intolerância ideológica ao pensamento conservador nas universidades, faz propostas sobre como reverter esse cenário e critica a atuação do Conselho Nacional da Educação, órgão colegiado que ele próprio integra.
- Por que grupos que afirmam defender a tolerância e a diversidade são os mais intolerantes e avessos à diversidade de pensamento?
GABRIEL GIANNATTASIO: Esta era exatamente a questão que me atormentava, e para respondê-la terei que recorrer a Trotsky e Marcuse. Mas, note, não quero dizer com isto que os protagonistas da intolerância tenham lido estes dois autores, creio até que não. Mas, a matriz explicativa do comportamento deles pode ser encontrada nestes dois autores.
Quando o líder da Revolução Russa, exilado no México, diz que não há um único princípio moral – portanto ele os relativiza – ele está dizendo que nós não podemos julgar as pessoas por uma mesma e única régua, daí o que pode ser moral em uma dada circunstância histórica, ou para uma dada classe social, pode não ser aceitável em condições diversas e para classes diferentes. Se Marx relativizou os interesses econômicos das classes, Trotsky submeteu os valores morais ao mesmo princípio.
Agora sigamos o raciocínio do filósofo da contracultura. Marcuse considerou o conceito tolerância um valor burguês, indefinido, indeterminado e abstrato, advindo da tradição liberal. Como se, quando um liberal declara que “tudo deve ser tolerado”, que “devemos respeitar todas as diferenças”, ele pusesse, no mesmo saco, o algoz e a vítima, o opressor e o oprimido. “Denomino de ‘abstrata’ ou ‘pura’”, diz Marcuse, “essa tolerância não-partidária na medida em que ela se abstém de tomar partido – mas, ao fazê-lo, ela realmente defende o mecanismo de determinação já estabelecido”.
Nesse sentido, a tolerância concreta, libertadora, seria tolerar a intolerância do oprimido diante da opressão e não tolerar a intolerância do opressor. Ou seja, deve-se tolerar a intolerância revolucionária e declarar intolerável a tolerância conservadora. Eis aí toda a lógica e partindo dela nenhum acordo, nenhuma conciliação, nenhuma paz é possível. O seu desenvolvimento lógico é o cancelamento do outro, a eliminação. O seu fim último é o terror.
Quanto à diversidade, é preciso deixa-la mais evidente. Os grupos hegemônicos que dominam as universidades defendem a diversidade demográfica, quero dizer, a diversidade étnico-racial, social, econômica, sexual e de gênero, mas se recusam a introduzir em suas pautas a diversidade ideológica ou de pensamento.
Neste caso, o discurso da diversidade esconde um jabuti, pois a ideia-força que eles perseguem é eliminar as diferenças entre os homens, ou seja, eles almejam uma sociedade em que todos serão iguais. Uma sociedade na qual Marta ganhará o mesmo que Messi, ou seja, a promoção da diversidade obedece a uma lógica que é a da igualdade. Neste caso o livro do filósofo e cientista político Norberto Bobbio intitulado “Esquerda e direita” continua atualíssimo.
- A segunda parte do livro traz um relato das experiências de um ex-aluno e orientando seu...
GIANNATTASIO: O livro tem a participação de outros autores. Esse ex-aluno e orientando, sem dúvida alguma, ocupa um papel central tanto na obra quanto na minha vida acadêmica. O relato do Guilherme Bordonal, que abre o segundo capítulo da obra, é um episódio decisivo nesta tomada de consciência. A partir dele, lembro que estávamos no ano de 2009, foi possível perceber que havia qualquer coisa de podre no ar.
Guilherme foi meu primeiro orientando em um programa de Mestrado, e a história dele se confunde, como um registro de caso, com um fenômeno que estava em curso na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que ele fazia o curso de Mestrado na Universidade Estadual de Londrina, passou a acompanhar os cursos on-line do Olavo de Carvalho.
Daí não demorou muito para que o palco de um invadisse o teatro do outro. Junto com Olavo, com sua erudição autodidata, eloquência e verve provocadora, vinha um arsenal bibliográfico que não circulava na academia. O fio desencapado logo provocou um curto-circuito. O resto está contado brilhantemente pelo próprio protagonista no livro. Vale a pena ler.
“Deve-se tolerar a intolerância revolucionária e declarar intolerável a tolerância conservadora. O desenvolvimento dessa lógica é o cancelamento do outro, a eliminação. O seu fim último é o terror”
- Há como reverter esse processo de crescimento da intolerância? De que forma?
GIANNATTASIO: Não temos alternativa: se não quisermos que a sociedade seja conduzida para o impasse e para a ruptura, é preciso reverter este processo. Na toada em que estamos, o horizonte não é nada promissor.
Uma ótima notícia é a de que acordarmos daquela espécie de estado de sonolência e torpor. Se tomarmos os procedimentos adotados no microcosmo da Universidade Estadual de Londrina posso dizer que:
- Devemos documentar cada atitude ou manifestação de intolerância ideológica sofrida;
- Devemos tornar público o caso, os intolerantes temem a exposição pública e só se sentem à vontade entre seus pares;
- Quando for o caso, informar as autoridades do ocorrido, se necessário é judicializando o problema;
- Criar uma rede colaborativa nos vários níveis, o que nós fizemos em Londrina através do projeto ‘UEL, a Casa da Tolerância’. Já existem alguns embriões desta rede colaborativa em escala nacional;
- Incentivar e divulgar iniciativas que apostem na valorização da diversidade ideológica.
Até aqui me referi a procedimentos muito práticos e imediatistas. Mas, há um método fundamental e que se dirige à comunidade mais letrada. Trata-se de um modo bastante antigo, clássico eu diria, mas que se encontra em desuso em nossos tempos, inclusive onde ele deveria reinar, nas universidades.
Refiro-me ao método socrático, que nos recomenda desconfiar de nossas convicções. Mais que isso, quando nos deparamos com um argumento – qualquer que seja ele – devemos ter acesso aos contra-argumentos. Devemos fazer como nos recomendava Schopenhauer: “emprestar nossa cabeça, permitindo que ela se transforme em um campo de batalha das ideias alheias”. Isto tudo nos pareceria quase óbvio, não?! Contudo, pasme, o leitor se deparará – na leitura de nosso livro – com exemplos que fariam Sócrates desejar mais uma dose de cicuta.
- Fale sobre o seu trabalho como membro do CNE – Conselho Nacional da Educação. O que esse conselho já fez de relevante no sentido de mudar esse cenário?
GIANNATTASIO: Fui indicado para assumir uma cadeira na Câmara Básica do Conselho Nacional de Educação em julho de 2020. O que me levou ao CNE foi essa experiência com o tema da defesa da pluralidade de pensamento no debate cultural e, em especial, na educação.
Importa lembrar, também, que o momento da minha posse coincidiu com a troca de comando no Ministério da Educação. Com a mudança, não resta dúvida, o tema da diversidade de pensamento e da intolerância ideológica perdeu espaço no MEC.
Importa lembrar, também, que o CNE foi criado em 1995, portanto ele carrega consigo, no seu DNA, toda uma compreensão da educação, consolidada por quase 30 anos de história e hegemonia modelar. Muitos gestores educacionais acompanham e integram, ainda que não interruptamente, o Conselho desde o seu nascimento.
Infelizmente o tema que levei ao CNE, ainda que inédito, nunca teve uma boa acolhida. Em uma das primeiras reuniões de que participei ouvi o argumento: “Nossa prioridade no Conselho é tratar os temas ligados aos problemas da igualdade de oportunidades na educação”. Ora, o que se esperaria de um Conselho de Estado seria que ele desse guarida tanto aos temas da igualdade quanto da liberdade na educação, exatamente para não se tornar instrumento de hegemonias ideológicas. Exatamente para não ser identificado com doutrinas políticas que estejam à esquerda ou à direita.
A fragilidade das instituições tornou-as permeáveis e permitiu que a política avançasse no seu interior, minando aquela que seria sua finalidade. A educação se tornou refém das ideologias, e o CNE, como órgão de Estado, não saiu ileso deste processo.
Em um livro do filósofo, sociólogo e historiador francês Raymond Aron, publicado na França no calor dos acontecimentos de 1968, intitulado, ‘A Revolução perdida: reflexões sobre os acontecimentos de maio’, Aron escreve sobre os riscos de arruinarmos as instituições educacionais. Como disse Aron, as instituições se tornam imorais quando perdem estes dois pré-requisitos: a tolerância recíproca entre os educadores e a disciplina consentida dos estudantes. Nossas instituições perderam ambos.
Por fim, devo dizer que este jornal, “Gazeta do Povo”, fez mais pela pauta da tolerância, da liberdade e diversidade de pensamento que o próprio CNE. Nestes quase dois anos como membro do Conselho, posso dizer que o CNE é parte do problema, mais que da solução.