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Faca usada no atentado contra Bolsonaro em 2018, em Juiz de Fora
Faca usada no atentado contra Bolsonaro em 2018, em Juiz de Fora| Foto: Reprodução

Está cada vez mais complicado escrever tendo que medir as palavras, coisa que nunca pensei que fosse precisar fazer como jornalista vivendo em uma democracia. Mas vamos lá.

Salvo engano, esta é a primeira vez desde o fim da ditadura militar que um filme é censurado pela Justiça. O documentário “Quem mandou matar Jair Bolsonaro?”, da Brasil Paralelo, teve sua exibição proibida pelo TSE até o dia 31 de outubro, dia seguinte ao segundo turno da eleição para presidente.

Além disso, o canal da produtora no Youtube foi desmonetizado. Segundo foi noticiado, a proibição atendeu a um pedido do PT – Partido dos Trabalhadores.

Mais detalhes no vídeo abaixo, postado pela Brasil Paralelo na forma de um comunicado aos seus assinantes:

A justificativa da sentença que determinou a censura foi a seguinte: evitar que “tema reiteradamente explorado pelo candidato Jair Bolsonaro em sua campanha receba exponencial alcance, sob a roupagem de documentário que foi objeto de estratégia publicitária custeada com substanciais recursos da pessoa jurídica Brasil Paralelo”. O tema, no caso, é o atentado a faca sofrido por Bolsonaro, na cidade de Juiz de Fora, em 2018.

Eu nem acho que a facada seja um tema reiteradamente explorado pela campanha do presidente. Mas, ainda que fosse, por que diabos a Justiça Eleitoral deveria agir para evitar que um tema explorado na campanha de um candidato recebesse exponencial alcance? Pelo fato de ser objeto de estratégia publicitária? Pela presunção antecipada de que o documentário contém fake news? Não seria recomendável assistir antes de proibir?

E que relevância tem o fato de o documentário ter sido custeado com substanciais recursos da pessoa jurídica Brasil Paralelo para embasar uma decisão tão grave e, repito, inédita desde a redemocratização do país?

Que legislação proíbe que se produza um documentário com substanciais recursos (privados, diga-se de passagem)? E que legislação se sobrepõe à liberdade de expressão garantida pela Constituição, impondo censura prévia a um filme que ninguém viu?

O estranho voto da ministra

Por tudo isso, parece que estamos diante de uma interferência que, primeiro, fere a liberdade de expressão; segundo, prejudica um candidato e beneficia outro; terceiro, sinaliza para o cidadão comum parcialidade por parte do órgão que deveria ser o fiador da neutralidade do processo eleitoral.

“Ah, mas o documentário é baseado em uma teoria da conspiração que contraria a investigação da Polícia Federal”, argumenta quem defende a censura.

Não importa. Ainda que o documentário afirmasse que quem mandou matar Bolsonaro foi o Papa Francisco ou a Beyoncé, seria justificável censurá-lo previamente? O problema é que sequer saberemos qual é a tese do filme até depois de fechadas as urnas – pelo simples fato de que ele está proibido.

Ninguém sabe, porque ninguém viu. Proibir depois de ver já seria algo controverso, no mínimo: o que dizer de proibir sem ver?

Curiosamente, outro documentário sobre o mesmo tema, "Bolsonaro e Adélio – Uma fakeada no coração do Brasil", sugere que a facada no então candidato Bolsonaro foi uma armação. Isso não é divulgar fake news? Mas esse documentário circula livremente em plataformas de streaming, sem que a Justiça Eleitoral demonstre qualquer incômodo ou preocupação.

Veja bem, leitor, é justo e certo que o documentário que afirma ter sido a facada uma farsa circule livremente, mesmo que a tese que ele defende soe absurda – e também contrarie, aliás, a investigação da Polícia Federal. O que não parece certo nem justo é a liberdade de expressão só valer para um lado, muito menos o órgão responsável pela lisura do processo eleitoral passar a imagem de parcialidade.

Ou bem o documentário viola alguma lei, e a proibição neste caso deve ser permanente, ou ele não viola lei alguma – e não pode ser proibido em momento algum.

Pois bem, em seu voto ratificando a proibição do documentário, a ministra Carmen Lúcia declarou o seguinte:

“O caso é extremamente grave. Não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil. Esse é um caso específico. Estamos na iminência de ter o segundo turno das eleições. A proposta é a inibição até o dia 31 de outubro, dia subsequente ao segundo turno, para que não haja o comprometimento da lisura, rigidez e segurança do processo eleitoral e dos direitos dos eleitores”.

Mas de que forma a livre circulação de um documentário comprometeria a lisura, rigidez e segurança do processo eleitoral? Não fica claro no voto da ministra. Se ainda é permitido ter opinião, a mim parece que o que pode comprometer a lisura da eleição é proibir a exibição de um documentário até que se realize o segundo turno.

E, se não se pode permitir a volta da censura sob qualquer argumento no Brasil, por que a ministra votou a favor da proibição? Não parece uma contradição? Qual é o nexo lógico entre as palavras ("Não se pode permitir a volta da censura") e o voto (a favor da censura)? Sintoma de uma época em que as narrativas perderam totalmente a conexão com a realidade...

E por que o fato de a “inibição” ter prazo de validade determinado pelo calendário eleitoral tornaria a censura menos censura? Ora, ou bem o documentário viola alguma lei, e a proibição neste caso deve ser permanente, ou ele não viola lei alguma – e portanto não deve ser proibido em momento algum.

Por que algo seria ilegal até 31 de outubro e passaria a ser legal a partir desta data? Estamos diante de uma inovação na ordem jurídica? Lembrando que a mesma ministra já declarou, em 2016, que "o cala-boca já morreu" e que "não há democracia sem imprensa livre".

O caso do governador de Alagoas

A titulo de comparação: há pouco menos de duas semanas, a ministra do STJ – Superior Tribunal de Justiça Laurita Vaz determinou o afastamento do cargo do governador de Alagoas, Paulo Dantas, do MDB, que concorre à reeleição.

Aliado do senador Renan Calheiros e do candidato do PT à presidência, Dantas foi afastado em razão de um inquérito que apura um esquema de desvio de R$ 54 milhões na Assembleia Legislativa do estado. A decisão da juíza, embasada em provas robustas, foi ratificada pelo plenário do STJ.

A ministra Laurita foi acusada por aliados do candidato do PT à presidência de ter agido com motivação política. Ela deveria, argumentaram, ter esperado passar a eleição antes de determinar o afastamento do governador. O argumento até pode fazer algum sentido na percepção do eleitor petista, mas a resposta da ministra é exemplar e cristalina:

“Se eu tivesse me curvado a essa expectativa de retardo, se tivesse, como se diz por aí, 'sentado em cima dos autos' em razão das eleições, aí sim estaria agindo com viés político porque estaria esperando fato estranho aos autos de um inquérito em regular andamento para adotar medidas cautelares necessárias e urgentes para conclusão das investigações e ainda, mais ainda, para estancar a sangria desatada do dinheiro dos cofres públicos do Estado de Alagoas".

Duas visões da Justiça

De certa forma, o encaminhamento dos dois casos – a censura ao documentário e o afastamento do governador de Alagoas – traduz duas visões paralelas da Justiça.

Na primeira visão, a Justiça deve agir de forma preventiva, proibindo a circulação de um filme em função da avaliação de que ele poderia conter fake news e beneficiar a campanha de um candidato. Mas como, rigorosamente, tudo em uma campanha é feito para beneficiar um candidato em detrimento do outro - inclusive pesquisas com 15% de margem de erro, que seguramente influenciaram muitos votos no primeiro turno - essa lógica cai por terra: ou então se abre um precedente para se proibir literalmente qualquer coisa.

Na segunda visão, o comportamento da Justiça não pode ser afetado por elementos estranhos a ela, como a contingência do calendário eleitoral. Inquéritos não devem ser adiados em função do risco de beneficiar um candidato e prejudicar outro - justamente porque esse adiamento, por si só, também beneficiaria um candidato e prejudicaria outro.

E, na prática, a lógica da decisão do TSE ao proibir o filme foi: “Para que esse documentário, que pode conter fake news, não beneficie um candidato, vou proibir sua exibição".

O problema é que, ao proibir, o orgão beneficia o outro candidato. É este o papel da Justiça Eleitoral? Tomar uma medida drástica em função de uma hipótese?

Na segunda visão da Justiça, soa ainda mais absurda a censura com prazo de validade, porque se explicita a conexão entre a censura e a eleição.

Se um filme pode circular depois do dia 31 de outubro, por que não poderia circular antes? Se ele não pode circular antes do dia 31, por que poderá circular depois?

O problema está no conteúdo do documentário ou na possibilidade de influenciar votos? Mas desde quando é proibido um documentário, ou mesmo uma peça de campanha, explorar temas polêmicos em busca de votos? Ou a facada não existiu e tudo não passa de uma alucinação coletiva que deve ser apagada da memória?

Qual das duas visões da Justiça irá prevalecer? A que julga que a liberdade de expressão deve ser condicionada ao calendário eleitoral? A que determina que uma mesma obra artística pode ser proibida antes da eleição e liberada depois? A que aparenta abrir mão do papel de fiadora da isenção para assumir um lado no processo eleitoral? Ou a que age da mesma maneira, com efetiva neutralidade, independentemente do lado beneficiado e do calendário?

Um fantasma ronda a democracia brasileira: o fantasma da censura. É assustador que muitas pessoas achem isso normal ou minimizem a gravidade do episódio do documentário da Brasil Paralelo– ou, pior ainda, que justifiquem a censura como uma forma de defender a democracia.

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