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O filósofo e o genocida
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Enquanto autoridades sanitárias do mundo inteiro recomendavam o isolamento social como forma de enfrentar a pandemia de Covid-19 (diminuindo o ritmo do contágio e, portanto, das mortes), Jair Bolsonaro condenou a histeria provocada por governos e alimentada pela mídia. Giorgio Agamben, prestigiado filósofo italiano de esquerda, também.

Em diversos artigos publicados a partir de fevereiro deste ano, Agamben se opôs firmemente às normas de quarentena impostas à população italiana, enxergando nelas manifestações de um “Estado de exceção” cujo objetivo era, com o pretexto de uma “emergência imotivada”, restringir liberdades essenciais dos cidadãos, como os direitos de ir e vir e de reunião. Bolsonaro disse coisas parecidas.

Bolsonaro questionou o uso da ciência como justificativa para paralisar um país inteiro - o que teria um custo altíssimo em sofrimento e vidas humanas, em função do desemprego que atingiria milhões de brasileiros. Agamben também questionou o poder da ciência, que classificou ironicamente como “a religião de nosso tempo”, pois ela estaria sendo usada para provocar o pânico e levar a população a aceitar passivamente ataques à liberdade por parte de governos policialescos.

Agamben defendeu a resistência da sociedade às medidas de isolamento em mais de uma ocasião – começando por um artigo publicado no jornal “Il Manifesto”, em 26/02, no qual afirmou que a pandemia de Covid-19 era uma “invenção” criada para promover um estado de medo coletivo que justificasse a imposição de políticas autoritárias: “Parece que, esgotado o terrorismo como causa de medidas de exceção”, escreveu o filósofo, “a invenção de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para ampliá-las além de todo limite".

Por fim, Agamben classificou a Covid-19 como uma “gripe normal”. Bolsonaro, como lembram todos os dias, a chamou de “gripezinha”.

Mas é preciso estabelecer nuances aqui, antes de levar o paralelismo adiante.

Quando Bolsonaro optou por defender que as pessoas saíssem às ruas para trabalhar, minimizando a gravidade da pandemia ("...no meu entender, está superdimensionado o poder destruidor desse vírus", declarou em 09/03), havia zero morte de Covid-19 no Brasil. E quando, duas semanas depois, em 24/03, o presidente criticou o fechamento do comércio e das escolas, comparando a Covid-19 à famigerada “gripezinha”, a situação estava longe de parecer desesperadora: eram 46 mortes acumuladas até aquela data.

Naquele momento, como deveria reconhecer qualquer pessoa intelectualmente honesta, muitos brasileiros virtuosos que citam raivosamente a fala da “gripezinha” para atacar o presidente também minimizavam a gravidade da pandemia – pela simples razão de que a informação disponível era muito menor. Basta lembrar que a orientação da própria OMS era que pessoas saudáveis não usassem máscara.

Já Agamben ainda teimava na tese negacionista em meados de abril, quando criticou mais uma vez os italianos por aceitarem passivamente a quarentena em função de um risco que “não era possível precisar”. Agamben escreveu isso em 13/04, quando os mortos na Itália, um país com população muito menor que a brasileira, já passavam de 20.000 (em mortes por milhão de habitantes, aliás, a Itália continua até hoje com números piores que o Brasil).

Em 22 de maio, quando o total de mortes na Itália se aproximava dos 33.000, o filósofo não se deu por vencido: publicou novo artigo, “Réquiem para os estudantes”, condenando asperamente a “ditadura telemática” das aulas online. Agamben exortou os estudantes a não se matricularem em seus cursos e atacou os docentes que se submetiam a esse modelo. Foi além: classificou esses professores como (adivinhem) fascistas: “(...) são o perfeito equivalente dos docentes universitários que em 1931 juraram fidelidade ao regime fascista”.

O filósofo levou adiante a referência ao fascismo, afirmando que o rastreamento da localização de celulares para monitorar o grau de isolamento social nas cidades “excede em muito toda forma de controle exercida sob regimes totalitários como o fascismo ou o nazismo”. Ou seja, Agamben sugeriu que monitorar aglomerações pelo GPS para tentar controlar a pandemia é pior do que perseguir, intimidar pela força, confinar em campos de concentração e matar em câmaras de gás.

É isso que acontece quando se substitui a realidade por uma ideologia: deixamos de ser sensíveis ao mundo, que passa a existir somente na medida em que se enquadra nas nossas teses mirabolantes. Agamben, como outros pensadores de esquerda, só é capaz de enxergar a realidade através do filtro de conceitos e dogmas que conformam a sua visão da democracia e do Estado – mesmo quando estão em jogo vidas humanas.

Para ele pouco importam as circunstâncias particulares e excepcionais da pandemia: no modo automático de seu pensamento, se um governo determina que as pessoas fiquem em casa, não é para protegê-las um vírus mortal, mas para estabelecer uma ditadura. Agamben é indiferente às vidas concretas das pessoas que adoecem e morrem (as mais pobres e vulneráveis, em sua maioria): estas só interessam na medida em que confirmam as ideias do grande pensador e do cercadinho ideológico em que ele vive.

Que eu me lembre, Bolsonaro nunca recomendou que estudantes deixassem de se matricular em protesto contra aulas online, nem ofendeu professores que se adaptaram ao esquema de aulas virtuais adotado por escolas e universidades. Nem muito menos comparou governadores e prefeitos (a quem o STF atribuiu o poder de decisão sobre as quarentenas, cabe lembrar) a fascistas e nazistas, mesmo discordando de suas políticas (e não estou dizendo aqui que ele estava certo).

No entanto, com raras exceções, as mesmas pessoas que chamam Bolsonaro de “genocida” e o acusam de praticar a “necropolítica” (a palavra da moda) continuam reverenciando Agamben como grande pensador – fazem, no máximo, ressalvas respeitosas e cheias de salamaleques à atitude do filósofo. Ninguém sugeriu sequer que Agamben fosse cancelado. Ninguém chamou o filósofo de genocida.

O que importa aqui é que tanto Agamben quanto Bolsonaro alertaram para os riscos de um Estado forte. Pode-se perguntar, retoricamente, se foi Agamben quem adotou, em relação à pandemia, um discurso anti-Estado, de viés neoliberal, ou se foi Bolsonaro quem adotou um discurso agambiano. O que não se pode é tratar Agamben com reverência e ao mesmo tempo acusar Bolsonaro de genocídio.

Mesmo quem defende as medidas de isolamento (eu, pessoalmente, acredito que sem quarentena a tragédia seria ainda maior, no Brasil e no mundo) não pode, de boa-fé, colocar na conta de Bolsonaro as 100 mil mortes de Covid-19 no Brasil, até porque (de novo) o STF, para o bem e para o mal, delegou aos governadores o poder de decisão sobre a política de combate a pandemia. Pode, no máximo, criticar Bolsonaro dar maus exemplos (sair sem máscara, provocar aglomerações etc). Mas maus exemplos muito piores já foram dados por outros presidentes recentes do nosso paí, sem que a turma que compara Bolsonaro a Hitler manifestasse qualquer indignação.

Quem chegou até aqui já deve ter entendido que o objetivo deste artigo não é defender ou atacar Bolsonaro, nem tampouco criticar ou elogiar Agamben. Um e outro fizeram suas avaliações e apostas.

O objetivo é chamar a atenção para o fato de que, nos tempos horríveis em que vivemos, não importa aquilo que se diz ou faz, mas quem diz ou faz.

Uma mesma declaração pode levar à execração pública e ao linchamento uma pessoa de direita e ao tratamento reverente uma pessoa de esquerda. Uma mesma piada será considerada o que é (uma piada) se for contada por um progressista, mas também pode ser classificada como um crime hediondo, se for contada por um conservador. Um mesmo elogio a uma mulher pode ser considerado o que é (um elogio) ou um estupro, a depender de quem o faz. É a “moral total flex”.

E sequer se percebe a contradição nesse duplo padrão: por exemplo, houve quem argumentasse que Agamben e Bolsonaronão podem ser comparados ao criticarem o isolamento social, porque suas intenções não eram as mesmas. Ora, confirmando o que escrevi acima, isso equivale a afirmar que um ato ou fala não valem nada: o que importa é a intenção por trás de quem fala ou age. Mas, se fosse assim, o Inferno estaria deserto.

Agamben até hoje não fez nenhuma autocrítica (a esquerda nunca erra). Já Bolsonaro, embora a turma do ódio do bem faça questão de ignorar isso e só se lembre da “gripezinha”, vem modulando o seu discurso e reconhecendo o difícil desafio imposto pela pandemia: já em 03/04, este foi o tema do meu artigo “O martelo de Maslow e o dever de mudar de ideia”, um dos primeiros que publiquei na Gazeta.

PS: Millôr Fernandes lamentava a inexistência de um ponto de ironia na língua portuguesa. Então, por via das dúvidas, e me antecipando a possíveis problemas de interpretação de texto: a palavra “genocida” foi usada de forma irônica no título deste artigo. Aliás, a palavra “filósofo” também.

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