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Capa do livro: “Woke, Inc.: Inside Corporate America’s Social Justice” (2021) de Vivek Ramaswamy.
Capa do livro: “Woke, Inc.: Inside Corporate America’s Social Justice” (2021) de Vivek Ramaswamy.| Foto: Reprodução/Editora Center Street

Um traço distintivo da nossa época é a aliança entre a esquerda e as elites financeiras internacionais, em busca de uma nova forma de hegemonia global. Basta ver o caminhão de dinheiro que fundações como a de George Soros despejam anualmente em ONGs progressistas no Brasil para perceber que algo mudou, e que os antigos conceitos de direita e esquerda já não dão mais conta dos processos em curso – e são usados, muitas vezes, como cortina de fumaça, para manipular os incautos e manter a sociedade na ignorância e na alienação.

Uma biblioteca inteira poderia ser escrita sobre o tema dessa estranha aliança entre a esquerda e os ricos e poderosos, que outrora ela abominava. Tema complexo e ainda carente de interpretações convincentes. Vou me limitar neste artigo a fazer algumas especulações.

Muito se fala, nos meios conservadores, em “direita consentida”, aquela direita domesticada e bem comportada que não ameaça o sistema. Mas a sobrevivência do sistema hoje talvez dependa ainda mais da “esquerda compatível”. Uma esquerda muito distante das bandeiras tradicionais do marxismo, como a luta de classes e o fim da propriedade privada. Atualmente, o horizonte da esquerda, a sua utopia, não é a sociedade sem classes: é o liberal-progressismo.

Li pela primeira vez a expressão “esquerda compatível” na conta do X de Isabel Monteiro, a Gringa Brazilien, uma influenciadora de esquerda nada convencional – e, por isso mesmo, constantemente atacada por militantes do PT e do PSOL. A Gringa define assim a esquerda compatível: “É a esquerda neoliberal-woke, que é financiada pelas Fundações & ONGs imperialistas dos Estados Unidos, e que hoje mandam no Brasil.” Em vídeo, no Youtube, ela faz uma análise mais detalhada do conceito.

A tese faz sentido: não apenas no Brasil, a esquerda abriu mão do confronto com o capitalismo e a democracia liberal e abandonou qualquer projeto revolucionário. Ao contrário, exceção feita a alguns sobreviventes da esquerda-raiz, como o PCO (Partido da Causa Operária), ela se coloca hoje a serviço de um projeto de congelamento do poder global, pela via, justamente, do liberal-progressismo. Não por acaso, o PCO é talvez o único partido de esquerda a ter sofrido sanções do Judiciário.

O liberal-progressismo usa as estruturas e normas vigentes não para promover mudanças relevantes na sociedade, mas para conquistar e se perpetuar no poder. Por isso mesmo, ele é patrocinado pelas elites financeiras: porque não representa nenhuma ameaça às fundações da ordem econômica vigente.

Ao contrário: o liberal-progressismo trabalha para impedir a emergência de novas potências, reservando ao Brasil e outros países o papel de coadjuvantes na arena internacional. Basta lembrar que Lula já propôs que a ONU se sobreponha aos parlamentos nacionais em questões ambientais, o que representaria o fim da soberania do país nessa área.

Se no contexto internacional o liberal-progressismo mantém o Brasil na periferia da economia global, para o público doméstico ele se vende como muito preocupado com a justiça social. Mas, em vez de atacar a raiz do problema, se limita a aumentar impostos e criar programas sociais e políticas de redistribuição de renda que perpetuam a desigualdades, ao inibir o empreendedorismo e tornar os pobres reféns perpétuos da ajuda governamental - desde o ensino básico, como escrevi neste artigo sobre os riscos do programa Pé-de-Meia.

O sujeito nunca entrou em um ônibus cheio e, no fundo, tem nojo dos pobres. Mas se considera virtuosamente de esquerda, porque é contra a exploração do petróleo na foz do Amazonas

Ao mesmo tempo, o liberal-progressismo incentiva a divisão da sociedade por meio de agendas identitárias supostamente inclusivas, mas cujo resultado mais notável é disseminar o ódio e a intolerância entre diferentes grupos de interesse, que já começam a se cancelar mutuamente, em um campeonato de vitimismo no qual ninguém sai vitorioso.

O liberal-progressismo se arvora defensor da democracia e do Estado de Direito - desde que não haja espaço para uma verdadeira oposição, que é invariavelmente desqualificada ou mesmo criminalizada. Nesse processo, o liberal-progressismo pode até contar com a ajuda do Judiciário que tem lado; das grandes corporações, acostumadas ao capitalismo patrimonialista politicamente orientado; e da velha mídia, hoje dominada por jornalistas que defendem abertamente a censura.

Eleições livres, pluralismo político e liberdade de expressão são assim relativizados: determinados políticos são impedidos de concorrer, o pluralismo se limita a uma janela ideológica que começa na extrema-esquerda e termina na centro-direita, e a censura é naturalizada e até vendida como necessária para se preservar a democracia. Aos poucos, toda dissidência é silenciada e reprimida, inclusive por meio do controle, digo, da regulação das informações e opiniões que podem circular nas redes sociais. Vale tudo para "recivilizar" o país.

No lugar do fim da exploração dos pobres pelos ricos, o liberal-progressismo propõe bandeiras vagas como a “justiça climática”, que têm a vantagem de fazer o “rico de esquerda” se sentir virtuoso. O sujeito nunca entrou em um ônibus cheio e, no fundo, tem nojo dos pobres, com quem prefere evitar qualquer convívio; mas se considera um justiceiro social, porque é a favor dos carros elétricos e contra a exploração do petróleo na foz do Amazonas.

A mesma dinâmica se aplica a todas as bandeiras hoje percebidas como sendo de esquerda. O mesmo sujeito do parágrafo acima pode viajar para a Europa de primeira classe e gastar, em uma tarde no shopping, mais do que paga de salário à sua empregada doméstica. Mas, como ele vota em candidatos do PT e do PSOL, defende a liberação do aborto e das drogas, ele se sente virtuosamente de esquerda – e lamenta que sua empregada doméstica seja evangélica e fascista.

Apesar de muitas vezes radical na narrativa, o objetivo do liberal-progressismo não é buscar mudanças estruturais na sociedade, ao contrário: é fazer as pessoas se conformarem com o status quo. Especialmente os pobres e os jovens, o alvo preferencial de sua propaganda, distraídos da crítica ao capitalismo como centro da sua agenda e focados em pautas identitárias, que não mudam a distribuição fundamental de poder e riqueza, nem aqui, nem na China - que, aliás, levou ao extremo a fusão dos benefícios do capitalismo com as agruras do socialismo: um dia chegaremos lá.

Nesse sentido, o liberal-progressismo pode ser entendido como a esquerda que foi cooptada pelo sistema: por ser "compatível" e financiada pelas elites políticas e econômicas, ele trabalha pela manutenção das desigualdades – inclusive das desigualdades entre os países ricos e pobres. Voltarei ao tema.

 

Conteúdo editado por:Aline Menezes
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