Não, não vou falar da aprovação da legalização do aborto pela Câmara dos Deputados da Argentina, nem sobre o decreto do presidente Alberto Fernández criando cotas para pessoas trans no Exército e no serviço público, nem sobre a liberação do cultivo da maconha para uso pessoal – medidas que já deixaram animados os chamados progressistas no Brasil, que também defendem essas bandeiras.
O mau exemplo citado no título é mais antigo.
Uns 15 anos atrás, um amigo portenho radicado no Rio de Janeiro me alertou para um processo que vinha ocorrendo na Argentina desde o renascimento do peronismo (em sua nova versão kirchnerista): a polarização radical, o cultivo do ódio e a divisão deliberada da sociedade em “nós” e “eles”, a ponto de amigos, colegas de trabalho, parentes e até cônjuges deixarem de se falar por diferenças políticas.
Esse processo de exaltação dos ânimos e acirramento de conflitos (que, naquele momento, também já estava em curso, mas ainda não era tão claro no Brasil) foi investigado pelo jornalista Jorge Lanata em seu livro “A década roubada”. Lanata batizou a divisão da sociedade argentina de “La Grieta” (“a fenda”). Em uma entrevista recente, ele declarou: “A fenda foi o que nos aconteceu de pior, porque a política pode mudar, a economia pode mudar, mas as famílias que se separaram, os amigos que brigaram, dificilmente voltarão a se unir”. O tempo está mostrando que ele tem razão: essas feridas podem demorar décadas para cicatrizar.
A fenda foi acompanhada da criação de inimigos imaginários, da manipulação da linguagem e da disseminação de discursos violentos e paranoicos, por parte do governo e sua militância – que se proclamavam paladinos da democracia e da tolerância: “O governo [durante o período dos Kirchner] obturou qualquer possibilidade de diálogo, construindo um relato que foi adotado por fanáticos que aboliram a realidade objetiva como se fossem uma seita religiosa”, afirma Lanata.
O “relato”, segundo a definição do livro “A década roubada”, foi o discurso que recriou a realidade argentina para adequá-la a uma agenda ideológica – e, para isso, transformou em inimigos todos aqueles que tinham opiniões divergentes, especialmente nos meios de comunicação. Difundiu-se assim a ideia generalizada de que “quem não está comigo está contra mim”.
Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. Bastaria citar como exemplo o caso da professora de uma escola pública de Caxias do Sul que, nesta semana, afirmou desejar a morte por Covid-19 de todas as pessoas de direita – e dos velhos em particular. Sem querer minimizar a gravidade do episódio, a professora não fez mais que repetir o que ela própria aprendeu e assimilou como verdade: o mundo se divide entre pessoas boas (a esquerda) e pessoas ruins (a direita).
O caso de Caxias do Sul não foi um episódio isolado. É isso que ainda se ensina em nossas salas de aulas, para crianças e adolescentes que no futuro repetirão as mesmas sandices. É por isso que, no Brasil “culto”, ser de direita ainda é uma pecha. Chamar alguém de direitista é uma ofensa, uma agressão, uma forma de desqualificação. Por sua vez, a esquerda é sempre “do bem”, não importa o que ela faça, não importa quão ultrapassadas e ineficientes sejam as suas propostas, não importa que suas teses tenham sido reiteradamente desmentidas pela História e continuem sendo diariamente desmentidas pela realidade.
Para o campo progressista e a parcela da população que o apoia, é preferível ver o país destruído a ver o país dar certo com seus adversários no poder
A direita aparece, no senso comum dessa hegemonia progressista, não ao lado da esquerda, como uma alternativa legítima de pensamento político, práticas e valores; ela não aparece nem mesmo atrás da esquerda. Na cabeça dessas pessoas, a direita caminha no sentido contrário ao da esquerda, ou seja, para trás; ser de direita é desejar que o país volte à escravidão, é o retrocesso. A política se reduz, para elas, à afirmação de um pensamento único e à perseguição de adversários.
É cômodo dividir o mundo entre mocinhos e bandidos. Sobretudo quando os mocinhos somos “nós”, pessoas de coração puro, que amamos o próximo e odiamos injustiças; “nós”, a esquerda. Já o papel dos vilões fica reservado para “eles”, pessoas sem coração, frias, egoístas e gananciosas, que não se comovem e nem se mobilizam diante da miséria do outro; “eles”, a direita.
No Brasil como na Argentina, esse pensamento único foi implementado com muita eficácia por governos que apresentavam traços semelhantes:
- O monopólio autodeclarado da preocupação com a justiça social e a redução das desigualdades;
- A defesa de uma grande participação do Estado na economia e na vida dos cidadãos, com o consequente combate à liberdade econômica e à dinâmica dos mercados;
- A satanização dos adversários políticos;
- A recusa sistemática a assumir a responsabilidade por qualquer crise, sempre jogando a culpa no colo da oposição golpista;
- O controle (ou a cooptação) dos meios de comunicação;
- A aposta na polarização crescente da população como estratégia para se perpetuar no poder e desviar o foco dos verdadeiros problemas do país (aí incluída a corrupção, que grassou nos dois países).
O resultado disso é uma sociedade fraturada, na qual o único objetivo de quem está fora do poder é sabotar quem está dentro (mesmo que isso prejudique principalmente os brasileiros mais pobres e desassistidos). Porque, para o campo progressista e a parcela da população que o apoia, é preferível ver o país destruído e arruinado a ver o país dar certo com seus adversários políticos no governo. E tome narrativa demonizando qualquer medida tomada pelo governo, por melhor que seja. É, na prática, a negação da política: não se enxerga o outro como um adversário com quem é fundamental dialogar, mas como um inimigo que se deve destruir e abater.
Nada de bom pode vir daí. Enquanto a sociedade continuar refém dessa situação, governo nenhum terá condições de vencer os difíceis desafios que se apresentam ao país, por maior que seja seu capital em termos de votos e apoio popular.