O inimigo público Emmanuel Goldstein, em cena do filme “1984”| Foto:
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Já virou lugar-comum citar “1984”, de George Orwell, como chave para se entender o que está acontecendo no Brasil e no mundo. Mas um personagem pouco lembrado do romance é fundamental nessa analogia: Emmanuel Goldstein.

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Antítese do Grande Irmão, Goldstein representa o inimigo que todos devem odiar no regime totalitário do IngSoc (“Socialismo Inglês”). Líder de uma misteriosa irmandade que almeja desestabilizar, por meio da subversão e do terrorismo, o regime no poder em Oceânia, Goldstein é o espantalho que desvia a atenção de todos os problemas do país.

“Embora Goldstein fosse odiado e desprezado por todos”, escreve Orwell, “embora todos os dias e mil vezes por dia, nas plataformas, nas televisões, nos jornais, nos livros, suas teorias fossem refutadas, esmagadas, ridicularizadas, e sua lamentável tolice fosse exposta aos olhos de todos, apesar de tudo isso sua influência parecia nunca diminuir. Não se passava um dia sem que espiões e sabotadores sob seu comando fossem desmascarados pela Polícia do Pensamento.”

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Goldstein era objeto do ritual diário de "dois minutos de ódio", do qual todos os cidadãos de Oceânia eram obrigados a participar. Em uma catarse coletiva, todos vociferavam e insultavam histericamente o inimigo asqueroso, quando a imagem de seu rosto era exibida em uma teletela.

O personagem, aliás, pode ter sido inspirado em Leon Trotsky, inimigo político de Stálin – o sobrenome judeu o sugere. Vale lembrar que, até ser assassinado a golpes de picareta no México, em 1940, pelo agente stalinista Ramón Mercader, Trotsky foi acusado de comandar uma rede de sabotadores e responsabilizado pelos fracassos em série do planejamento central da economia soviética.

Em Oceânia, cultivar diariamente o ódio a Emmanuel Goldstein é fundamental para a sobrevivência do regime; enquanto houver esse espantalho, o partido terá uma desculpa para explicar todas as mazelas da economia – e também um pretexto para promover a censura, o cerceamento das liberdades, a perseguição de adversários. Uma justificativa, em suma, manter o povo calado, amedrontado e sob vigilância constante das autoridades (porque o Grande Irmão está sempre de olho).

A semelhança com o Brasil de 2024 salta aos olhos. Jair Bolsonaro é o inimigo lembrado e esculachado pelo poder todos os dias, mil vezes por dia. É – e, ao que tudo indica, continuará sendo – o bode expiatório de todos os infortúnios do país, passados, presentes e futuros.

E dois minutos não são suficientes para o ritual de ódio: a execração do ex-presidente consome horas por dia, todos os dias, mil vezes por dia. Algo parecido está acontecendo com Donald Trump nos Estados Unidos.

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A semelhança não para aí. Como em Oceânia, a manipulação da linguagem é uma prática cotidiana no Brasil – a começar pela estranha associação da palavra “fascismo” a quem prega a liberdade econômica e a diminuição do papel do Estado, o exato oposto da ideologia fascista. Trata-se, seguramente, de uma ressignificação em defesa da democracia, que aliás é outra palavra que também vem sendo ressignificada.

Também como em Oceânia, metade da população brasileira se sente hoje vigiada e acossada pela Polícia do Pensamento e pelo Ministério da Verdade. Muito se fala sobre a regulação das redes sociais, mas a verdade é que as redes já estão reguladas pelo medo: como em Oceânia, ninguém se sente livre para dizer o que pensa – digo, ninguém da metade errada da população, porque a metade certa tem salvo-conduto para falar qualquer coisa.

Bolsonaro é o inimigo lembrado e esculachado pelo poder todos os dias, mil vezes por dia: é o bode expiatório de todos os infortúnios do país, passados, presentes e futuros      

As coincidências não param. Em Oceânia, outro órgão importante do regime é o Ministério do Amor, que no romance de Orwell é responsável por lidar com quem pensa de forma diferente dos donos do poder – o que inclui, eventualmente, cancelar passaportes e exterminar das redes sociais. Mas a principal função do Ministério do Amor é promover a lavagem cerebral em massa da população. Porque não basta eliminar a oposição, é preciso convertê-la.

Mas a vida nem sempre imita a arte, e a realidade resiste a ser enquadrada em narrativas. Um ano de pancadaria incessante, de pressões e ameaças veladas ou explícitas, de intensas campanhas de assassinato de reputação não afetou em nada a popularidade do ex-presidente, que continua sendo festejado e cumprimentado nas ruas por onde passa. Aparentemente, a pregação contra Goldstein, digo, Bolsonaro, só atingiu os já convertidos, não conseguiu converter ninguém ou quase ninguém.

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Como explicar esse fenômeno? Minha teoria é que o brasileiro comum não gosta de perseguição. E que o ex-presidente vem sendo impiedosamente perseguido já é algo reconhecido até pela esquerda-raiz independente – representada, por exemplo, por Rui Costa Pimenta, do PCO, e Aldo Rebelo, que ontem mesmo afirmou que “golpe é fantasia para legitimar polarização”.

Esta esquerda, aliás, já corre o risco de ser cancelada e rotulada de extrema-direita – já que de extrema-direita, hoje, são rotulados todos aqueles que ousam contestar a narrativa hegemônica compartilhada pelo poder e pela grande mídia.

Fato: Muita gente que não simpatiza com Bolsonaro e não votou nele está cada vez mais incomodada com esse samba de uma nota só, com esse disco arranhado de combate ao fascismo, com esse truque de usar a defesa da democracia como pretexto para perseguir e restringir liberdades.

Também incomoda a um número crescente de cidadãos comuns a prática reiterada de constrangimento, o discurso de desqualificação sistematicamente dirigido a, pelo menos, 58.206.354 brasileiros – que são tratados diariamente como ignorantes, fascistas, cidadãos de segunda categoria ou mesmo como criminosos, gente que merece ser excluída do convívio social.

E qual foi mesmo o crime que esses brasileiros cometeram? Discordar. Como na Oceânia de “1984”, discordar virou um risco. Só é permitido dizer sim, ou ficar calado.

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Se essa estratégia estivesse dando certo, até se entenderia. Mas não está dando certo. Pesquisa recente do Datafolha – do Datafolha! – garante que a polarização entre petistas e bolsonaristas continua a mesma do imediato pós-eleição. A rigor, o índice que piorou um pouco foi o do petismo: o do bolsonarismo se manteve rigorosamente o mesmo de dezembro de 2022.

Não há hipótese de um país dar certo quando o poder e a grande mídia decidem se unir para intimidar e tratar como inimiga metade da população, como se fosse crime ser de direita, ou defender a liberdade econômica, as ideias conservadoras, a família e os valores cristãos. A não ser que o objetivo seja mesmo transformar o Brasil em uma distopia pior do que aquela imaginada por George Orwell.