Hoje, quase ninguém se lembra dele, e quem lembra não associa o nome à principal realização do seu governo, o mais radical e eficaz plano de estabilização econômica da história do país: o Plano Real - que acaba de ficar trintão.
Estou falando, é claro, de Itamar Franco, um dos dois vice-presidentes que assumiram o governo e herdaram uma situação caótica do antecessor (Fernando Collor, no caso, defenestrado do Planalto por um processo de impeachment) e conseguiram, mal ou bem, colocar a economia do país nos eixos.
O segundo foi Michel Temer, que herdou o posto de Dilma Rousseff, igualmente defenestrada, e tentou promover reformas importantes, antes de ser sabotado pelo sistema e pela grande mídia, como expliquei neste artigo.
Itamar Franco e Michel Temer são dois grandes injustiçados na história recente do país. Não são os únicos, claro: um terceiro está sendo ainda mais injustiçado.
Quando Itamar assumiu a presidência, no final de 1992, o Brasil vivia um caos econômico. A inflação chegou a inacreditáveis 2.708% ao ano, corroendo salários e tornando desesperador o cotidiano do brasileiro comum. As maquininhas de remarcação de preços nos supermercados não paravam de trabalhar, dia e noite – isso quando não havia desabastecimento, o que era frequente. Em suma, um pesadelo.
Como chegamos a esse ponto? Desordem nas contas públicas. Vínhamos de governos que gastavam mais do que arrecadavam, o que provocava descontrole fiscal, perda de credibilidade da moeda e inflação.
Para mitigar os efeitos da inflação, os governos indexavam salários e contratos, o que realimentava o ciclo de corrosão do poder de compra. E, para compensar o descontrole de gastos, aumentavam-se os impostos, o que deteriorava ainda mais a economia.
Tudo isso gerava uma crise de confiança e levava à fuga de capitais. Em um ambiente de incerteza e imprevisibilidade jurídica, os agentes do mercado deixavam de acreditar na eficácia das políticas governamentais.
Ainda bem que nada disso acontece hoje, não é mesmo?
O Plano Real foi um caso de dupla paternidade, uma parceria na qual apenas um dos sócios ficou com todos os louros da fama
A situação era desesperadora. Sob forte pressão da sociedade e do mercado, em maio de 1993, Itamar Franco nomeou seu novo ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC), dando a ele carta branca para tomar medidas radicais na guerra contra a inflação.
Isso depois de vários planos malsucedidos durante o governo Sarney, que fracassaram miseravelmente ou só tiveram efeitos de curto prazo. Pouca gente acreditava que daria certo - inclusive o PT, que, apostando no fracasso, foi contra o Plano Real.
Mas o plano foi um sucesso, e quem ficou com todos os créditos, como se sabe, foi Fernando Henrique, o ministro que recebeu a encomenda. E, secundariamente, sua equipe de economistas (que incluía nomes como Gustavo Franco, Pérsio Arida, Pedro Malan, André Lara Resende e Edmar Bacha).
FHC, aliás, usaria o sucesso do Real como plataforma para catapultar suas vitoriosas candidaturas à presidência, em 1994, e à reeleição, em 1998. Nos dois casos, vale lembrar, ele derrotou Lula no primeiro turno.
No processo de estabilização da economia, Itamar Franco teria sido, quando muito, um mero coadjuvante. Mas ele se enxergava como o verdadeiro pai do Plano Real, tanto que declarou, já no final de seu curto mandato: “A grandeza dessa conquista transcende as circunstâncias do tempo eleitoral. Trata-se de um esforço de toda a nação, que coube ao presidente da República coordenar e administrar, a fim de, no cumprimento impostergável do seu dever, deixar a seu sucessor, quem quer que seja o escolhido, uma moeda sólida, capaz de promover o desenvolvimento sem faltar a justiça”.
Itamar só é lembrado hoje pelo topete indomável e por episódios folclóricos, como sua malograda tentativa de ressuscitar o Fusca; ou o desfile de Carnaval no Rio de Janeiro em que foi fotografado ao lado de uma animada jovem sem calcinha, “com as partes à mostra”, como se dizia antigamente.
Mas foi Itamar - e não FHC, na época seu subordinado - o presidente que pôs um ponto final em anos de hiperinflação no país. Ou seja, o Real foi, no mínimo, um caso de dupla paternidade, uma parceria na qual apenas um dos sócios ficou com todos os louros da fama.
A verdade é que, à frente da chamada “República do Pão de Queijo” (assim chamada pela predominância de aliados mineiros em postos-chave do seu governo), Itamar Franco não foi apenas o presidente de um mero mandato de transição. Ele se empenhou, com sucesso, a estabilizar a economia, ajustar as contas públicas, cortar gastos para reduzir o déficit e, finalmente, debelar o monstro inflacionário.
Veja bem, caro leitor, não estou negando a FHC e sua equipe a autoria intelectual do Plano Real. Mas normalmente se atribuem as principais realizações de um governo ao presidente, não aos seus ministros – até porque é o presidente quem decide, encomenda e autoriza. No mínimo, faltou habilidade a Itamar para capitalizar politicamente o Real e colher seus frutos. Habilidade que sobrou a Fernando Henrique.
E ele sabia disso. Itamar carregou até o fim da vida a mágoa pela falta de reconhecimento. Pouco antes de morrer, em 2011, declarou numa entrevista: “Se não fosse por mim, o Fernando Henrique seria hoje um professor universitário”.
P.S. Para quem quiser saber mais sobre a gestação do Plano Real, o livro “3.000 dias no bunker”, do meu amigo Guilherme Fiúza, é leitura obrigatória.