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O que o incêndio do Reichstag nos ensina
| Foto: Mary Evans Picture Library/Weima/picture-alliance

Em meio a um período de intensa polarização política e instabilidade econômica, com hiperinflação e desemprego em massa, em 27 de fevereiro de 1933 tacaram fogo no Reichstag, a sede do Parlamento alemão. O atentado é até hoje classificado como “um duro golpe na democracia alemã”. Mas o pior veio depois.

As consequências do incêndio criminoso foram imediatas, duradouras e profundas. O uso político do ataque provocou uma onda de repressão que foi decisiva para a instauração de um regime de terror. Aproveitando-se do momentâneo caos gerado, o recém-nomeado chanceler Adolf Hitler, que ainda enfrentava fortes resistências, moveu-se rapidamente para consolidar seu poder.

Alegando ser inaceitável semelhante ataque às instituições e à vontade popular, já no dia seguinte o presidente Hindenburg assinou, a pedido de Hitler, o Decreto do Incêndio do Reichstag, que restringia a liberdade de expressão e conferia amplos poderes à polícia, inclusive o de prender suspeitos sem o devido processo legal.

O passo seguinte foi a perseguição e prisão de opositores políticos, especialmente comunistas e social-democratas. Teve início uma repressão em massa. Milhares de pessoas foram presas, incluindo deputados eleitos, que tiveram seus direitos políticos cassados.

Também com o pretexto de defender as instituições, foi aprovada em março a Lei de Plenos Poderes, com novas medidas repressivas que limitavam a liberdade de imprensa, a privacidade da correspondência e os direitos de associação e reunião, além de permitir ao chanceler governar por decreto.

Na prática, o Parlamento alemão se autodissolvia, transferindo “voluntariamente” seus poderes legislativos ao Executivo. Considera-se que essa lei, aprovada de forma tecnicamente legal pelo Parlamento, foi o marco que efetivamente deu início à ditadura nazista. Estava preparado o terreno para se eliminar toda e qualquer resistência ao regime.

Muitos historiadores especulam que o incêndio do Reichstag foi provocado ou, no mínimo, incentivado pelos próprios nazistas, para criar uma atmosfera de pânico e justificar ações repressivas.

Embora, mais de 90 anos depois, ainda exista um debate sobre a autoria e as circunstâncias do atentado, há um consenso entre historiadores: o episódio foi um ponto de inflexão no processo de desmantelamento da República de Weimar e de instauração de uma ditadura que começou destruindo liberdades civis e terminou da forma que terminou.

Com as liberdades civis suspensas e a oposição política neutralizada, Hitler e seus aliados reestruturaram o Estado alemão. Usaram um ataque à democracia como escudo e pretexto para destruir as instituições e perseguir adversários. Tudo dentro da legalidade, e ostentando virtude ainda por cima.

Houve uma reorganização de muitas instituições, e o Judiciário não foi exceção. As estruturas judiciais e políticas da República foram usadas para conquistar o poder e, uma vez no controle, desmantelar todos os alicerces democráticos.

Qual foi o truque? Usar o arcabouço legal da democracia para chegar ao poder e, em seguida, minar o sistema democrático. Os primeiros passos de Hitler seguiram os procedimentos legais e foram justificados pela necessidade de proteger as instituições. Mas seu objetivo era a destruição da democracia e a imposição de uma ditadura.

Após consolidar o poder de forma tecnicamente legal, o regime nazista passou a eliminar qualquer vestígio de oposição. Partidos foram banidos, a imprensa foi censurada, e o Estado assumiu de vez o controle de universidades e sindicatos

Vale lembrar que a nomeação de Adolf Hitler como chanceler, em janeiro de 1933, foi um ato legal, previsto pela Constituição. O "Decreto do Incêndio do Reichstag", que suspendeu liberdades civis e autorizou a prisão de opositores políticos, também foi tecnicamente legal, justificado pela suposta ameaça ao regime (tecnicamente) legítimo no poder.

A Lei de Plenos Poderes, que permitiu ao governo legislar sem o Parlamento, foi aprovada por maioria de dois terços dos deputados, conforme determinava a Constituição. Sabe-se que essa maioria foi obtida por meio de intimidações, chantagens, ameaças e manobras políticas como liberação de verbas e outras vantagens, com forte pressão sobre os deputados de oposição.

Após consolidar o poder de forma tecnicamente legal, o regime nazista passou a eliminar qualquer vestígio de oposição. Partidos foram banidos, a imprensa foi definitivamente censurada, e o Estado assumiu de vez o controle de organizações da sociedade civil, incluindo universidades – aparelhadas e “nazificadas” – e sindicatos – substituídos por uma organização estatal, a Frente Alemã do Trabalho.

Com fartos incentivos ao "ódio do bem", a violência e o terror foram amplamente utilizados, mas sempre como uma fachada de legalidade e legitimidade.

Indispensável para o êxito desse processo foi a parceria do Poder Judiciário. Embora nem todos os juízes apoiassem diretamente Hitler, o sistema não foi apenas conivente com suas medidas autoritárias: extrapolando suas funções, o Judiciário desempenhou um ativo papel político na consolidação do regime.

A Constituição de Weimar garantia liberdades e direitos democráticos, mas, na prática, isso só valia para quem apoiasse o regime. Juízes aplicavam a lei de forma seletiva: eram brandos com extremistas nazistas e extremamente severos com opositores. Estavam, supostamente, defendendo as instituições, diante da crescente desordem econômica e social. Tecnicamente, estavam do lado da lei. Errados estavam os opositores.  

O medo também foi um fator. Aqueles que não se alinhavam com o novo regime corriam o risco de perder seus cargos ou sofrer outras represálias. Estabeleceu-se um clima de intimidação, e muitos preferiram colaborar.

Além disso, havia juízes que acreditavam que seu papel era tão somente aplicar a lei em vigor, sem considerar seu conteúdo ético e moral. Esse formalismo facilitou a implementação das políticas nazistas, incluindo as leis antissemitas, como as leis de Nuremberg, que institucionalizaram a perseguição dos judeus.

O fato é que, por convicção ideológica, conformismo ou puro medo, com o passar do tempo o Judiciário se tornou cada vez mais cúmplice do processo de construção do Estado nazista. Tudo dentro da lei.

Respondendo à pergunta do título deste artigo: o que o incêndio do Reichstag nos ensina é que momentos de crise podem ser usados para fazer avançar agendas políticas perigosas, que degeneram a democracia e levam à ditadura. O uso do medo e das instituições para eliminar a oposição e se perpetuar no poder deveria ser uma lição duradoura sobre os perigos do autoritarismo e da supressão das liberdades civis.

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