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Luciano Trigo

Luciano Trigo

O risco de um terceiro turno

(Foto: Reprodução Instagram)

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O título deste artigo seria o mesmo caso Jair Bolsonaro tivesse vencido. Em uma eleição fadada a ser decidida por uma diferença mínima de votos, e na qual os laços do eleitorado com os dois candidatos têm componentes emocionais e psicológicos profundos, fosse qual fosse o vencedor ele teria pela frente o desafio de lidar com a rejeição de dezenas de milhões de brasileiros.

Bastaria esse fator para prolongar a polarização da campanha eleitoral para muito além do fechamento das urnas, em um anunciado terceiro turno. Foi, aliás, o que aconteceu na eleição passada, quando o terceiro turno começou na mesma noite da divulgação do resultado – e se prolongou pelos quatro anos seguintes. Tivesse sido Bolsonaro reeleito, seguramente essa situação também se repetiria pelos próximos quatro anos.

Mas não é só isso. Tendo sido Bolsonaro o perdedor, seu eleitorado se sente no direito de achar que o processo eleitoral não foi justo nem isonômico (por via das dúvidas, atenção, censores de plantão: aqui e no restante deste artigo, não estou afirmando que algo aconteceu, estou dizendo que está é a percepção generalizada entre os eleitores do presidente).

Desnecessário detalhar aqui as reiteradas ocasiões em que, na percepção desse eleitorado, três atores que deveriam agir como fiadores da lisura e da neutralidade da eleição agiram de forma partidária, como cabos eleitorais de um candidato em detrimento do outro: a grande mídia, os institutos de pesquisa e a própria Justiça.

No eleitorado de Bolsonaro, foi generalizada a percepção de que o “sistema” estava disposto a tudo para eleger o outro candidato. Por exemplo, sob a alegação de defesa da democracia, a censura foi reabilitada.

Em dois episódios dignos da ditadura militar, a Jovem Pan foi amordaçada, com vários jornalistas afastados, e um documentário sobre o atentado da campanha de 2018 foi proibido sem sequer ter sido assistido.

Enquanto isso, o consórcio da grande mídia e até ministros do Supremo deixavam clara sua preferência, e outro documentário, que afirmava que o atentado foi uma farsa, continuou sendo livremente exibido em plataformas de streaming.

Por sua vez, institutos de pesquisa que erraram miseravelmente no primeiro turno continuaram a divulgar números mirabolantes – por exemplo, ainda ontem apontavam empate técnico para governador em São Paulo – como se nada estranho tivesse acontecido, e como se a sua credibilidade não tivesse sido comprometida.

Além disso, até as vésperas da votação, o programa eleitoral de um candidato espalhava sem qualquer cerimônia que o outro candidato planejava acabar com as férias e o décimo-terceiro salário, como se estivesse liberado para divulgar fake news, enquanto o programa eleitoral do outro não podia sequer mencionar alguns acontecimentos da nossa História recnete, e jornalistas estavam proibidos de empregar determinadas palavras.

Por fim, uma denúncia bem fundamentada de sabotagem a mais de 140.000 inserções nas emissoras de rádio de um candidato no segundo turno, que pode ter impactado fortemente a votação no Nordeste, foi sumariamente rejeitada pelo mesmo órgão que ordenou uma operação de busca e apreensão contra empresários com base em prints de conversas em um grupo privado no WhatsApp.

Por tudo isso, é compreensível que a percepção de parte do eleitorado tenha sido de que o jogo não foi justo como deveria. Ainda assim, vale lembrar, Bolsonaro venceu com folga em três das cinco regiões do país - Sudeste, Sul e Centro-Oeste - e venceu apertado na Região Norte. Só perdeu no Nordeste. .

Um voto condicional

Por óbvio, o resultado das urnas deve ser respeitado, mas é ilusão acreditar que o eleitorado de Bolsonaro vai esquecer tudo isso. As condições objetivas para o terceiro turno estão dadas.

Além de conviver com o inconformismo de 58 milhões de eleitores, o novo presidente enfrentará outros desafios nada triviais: primeiro, o de lidar com um Congresso majoritariamente conservador e de direita, bem como com governadores de oposição eleitos com folga – dois deles no primeiro turno – nos três maiores colégios eleitorais do país: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

E, principalmente: se não quiser sofrer um rápido desgaste, o novo governo terá de dar continuidade ao processo de recuperação da economia observado nos últimos meses – o que pode ser particularmente difícil se considerarmos os sinais emitidos na campanha e a inevitável pressão que virá dos setores mais à esquerda do chamado campo progressista.

Estivéssemos vivendo uma recessão, com inflação e desemprego subindo, o candidato do PT teria vencido no primeiro turno. Mas o fato é que hoje os indicadores econômicos são positivos, existe a sensação de estabilidade e previsibilidade, e não haverá uma “herança maldita” sobre a qual jogar a culpa em um eventual cenário de deterioração econômica.

Não precisa nem chegar perto da tragédia vivida pela Argentina: se a inflação e o desemprego voltarem a crescer, se a trajetória de recuperação do crescimento do PIB for interrompida, se a gasolina voltar a subir – e torço, sinceramente, para que nada disso aconteça – a situação pode se complicar muito rapidamente, porque a população está cansada de crises.

É fácil visualizar milhões de brasileiros frustrados ou insatisfeitos voltando a ocupar as ruas, aos primeiros sinais de um revertério na economia.

E chego aqui ao coração da matéria, ao cerne da questão: da mesma maneira que aconteceu em 2014, quando Dilma Rousseff foi reeleita em uma eleição apertada (mas muito menos apertada que a de hoje), o voto que decidiu a eleição de 2022 foi condicional. Em 2014, apesar das evidências em contrário, o eleitor volátil resolveu dar uma chance a Dilma, acreditando em suas promessas. Ela já começou o segundo mandato sob pressão.

Muito rapidamente, aquele mesmo eleitor entendeu que as promessas de campanha não iriam se cumprir. Como Dilma foi reeleita com a condição de entregar o que prometeu – e não entregou – ela perdeu rapidamente a base de apoio que a sustentava, no Congresso e na sociedade.

Todo mundo sabe o que aconteceu em seguida: veio o longo e sofrido processo de impeachment, e Dilma foi mais uma vítima da “maldição do Vice”.

Torço sinceramente para que o Brasil não tenha que passar por isso novamente, para que não haja nenhuma crise, para que a economia continue a prosperar com bases sólidas e responsabilidade fiscal, para o bem da população.

Mas nem tudo pelo que a gente torce acontece, e algumas condições objetivas para um retrocesso econômico parecem dadas, até porque já foram anunciadas.

O tempo não anda para trás

Eu e muitas pessoas que conheço já passamos pela seguinte experiência: uma viagem que ficou na memória como tendo sido maravilhosa. Anos depois, a gente resolve repetir a mesma viagem, na expectativa de reviver as mesmas sensações, e é só derrota. Porque uma viagem não é só o destino: é também o timing, o contexto, a companhia, o momento que estamos vivendo.

Tenho a sensação de que, como os viajantes reincidentes, muitos eleitores foram motivados, em alguma medida, pela nostalgia, pelo desejo de recuperar as suas experiências subjetivas do período 2003-2010, quando, em uma bonança alavancada pelo boom das commodities, a economia brasileira efetivamente cresceu, e existiu a percepção de que programas de distribuição de renda foram eficazes em promover a justiça social de uma forma inédita no país (estou falando, repito, da percepções).

Como nas viagens, nossa memória em relação à política é seletiva: tendemos a ficar só com as lembranças boas e apagar do HD as crises e os escândalos de corrupção que marcaram aquele período.

A campanha vencedora deste ano soube capitalizar essa nostalgia: apostou na esperança de uma volta a um passado idealizado na memória (ou na fantasia, no caso dos mais jovens), quando o amor triunfava e todos eram felizes.

Mesmo que isso fosse uma verdade objetiva, e não uma percepção subjetiva, o problema é que o tempo não anda para trás. O contexto, as circunstâncias e a própria sociedade brasileira são hoje completamente diferentes de 20 anos atrás.

Basta dizer que em 2003 sequer existia direita no país: a esquerda era senhora absoluta das ruas e das redes sociais. Não havia um político conservador com a mínima capacidade de mobilizar o povo. A narrativa era hegemônica.

Hoje não é mais assim. Haverá, certamente, um período de festa e catarse, porque há muita energia represada. Mas, como sempre, em algum momento a realidade prevalecerá, porque ninguém vive de narrativa.

Os boletos continuarão a chegar. Os problemas reais das pessoas não serão resolvidos em um passe de mágica: podem até piorar, caso a economia se descontrole. A lua-de-mel do eleitor casual com o novo governo pode durar pouco tempo.

Tomara que não aconteça, mas um risco real é que, como os viajantes citados acima, muitas dessas pessoas rapidamente passem a se perguntar: "Que estranho, da primeira vez que estive aqui foi tão legal... Por que agora não está dando certo, se derrotamos o Fascismo? Por que meu filho tem diploma universitário, mas não consegue emprego e passa o dia inteiro na internet? Por que não estou comendo picanha? Cadê a minha picanha???"

E, principalmente, no caso do eleitor minimamente preocupado com a liberdade de expressão: “Por que não posso mais criticar o governo? Era tão bom poder falar qualquer coisa sem sentir medo, era tão bom poder chamar Bolsonaro de fascista e genocida sem que nada me acontecesse...”.

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