Ilustração da versão em quadrinhos de “O Alienista”, de Machado de Assis| Foto: Reprodução
Ouça este conteúdo

Não sei se “O Alienista”, de Machado de Assis, ainda é leitura obrigatória no ensino fundamental. Como desconfio que não, segue um resuminho da história, para quem não leu e para quem não lembra.

CARREGANDO :)

Após uma temporada na Europa, o médico Simão Bacamarte regressa à sua cidade natal, Itaguaí. Mergulhado em estudos sobre psiquiatria, campo então incipiente da medicina, ele tem um projeto: a abertura de um manicômio, chamado Casa Verde, para abrigar todos os loucos da região.

Dotado de um poder sem limites e de uma convicção, combinação sempre perigosa, Bacamarte passa a enxergar sintomas de loucura nos comportamentos e conversas mais triviais, pretexto suficiente para mandar recolher ao manicômio respeitáveis cidadãos da cidade: o boticário, o barbeiro, o vigário, um vereador. Ninguém está livre de ser considerado louco. Quem será o próximo?

Publicidade

Quando a população de Itaguaí começa a ficar apreensiva e, em seguida, alarmada, já é tarde. Não há mais como deter o autoritário Bacamarte, que chega a internar compulsoriamente na Casa Verde 75% dos habitantes da cidade – incluindo sua própria mulher, Dona Evarista, que aliás não era simpática nem bonita.

Bacamarte se dá conta da loucura de Dona Evarista quando ela passa uma noite sem dormir, por não conseguir decidir que roupa usaria em uma festa. Casa Verde nela! Já o vereador Galvão é diagnosticado como louco quando propõe à Câmara a aprovação de uma lei que proíba a internação de vereadores. Já para a Casa Verde!

Alguns moradores chegam a ensaiar uma resistência, chamada de Revolução dos Canjicas, em homenagem ao apelido do barbeiro dado como louco. Mas a revolta fracassa miseravelmente, e todos os insurgentes são internados – com exceção dos que se aliam ao médico, o que não os livra de uma internação futura.

O final da novela é cômico: o dr.Bacamarte conclui que sua teoria sobre a loucura estava errada, liberta todos os pacientes da Casa Verde e se tranca ele próprio no manicômio, onde morre meses depois.

Está todo mundo ficando com medo de conversar, dar sua opinião ou expressar sua preferência política, e não é só nos grupos de Whatsapp

Publicidade

Não sei por quê, mas acordei com a sensação de que o Brasil de 2022 não está distante da Itaguaí da novela de Machado de Assis, publicada em 1882.

No título deste artigo, o jornalista Leandro Narloch já associou o protagonista de "O Alienista" a um ministro do STF, depois que este autorizou operações de busca e apreensão na casa de empresários que cometeram o crime de apoiar o presidente eleito.

O que aconteceria, pergunta o articulista, se, “para manter a coerência e a isonomia na aplicação da lei”, o ministro adotasse a mesma medida contra os membros de todos os grupos privados de Whatsapp nos quais já se defendeu um golpe para depor o presidente ou mesmo a sua morte? Fato: ia faltar polícia para fazer tanta operação de busca e apreensão.

(Vale lembrar aqui que já se defendeu abertamente golpe contra o presidente e já se desejou abertamente a sua morte em colunas de jornal, sem que isso incomodasse o Supremo ou sequer fosse considerado discurso de ódio. Simão Bacamarte pelo menos era imparcial.)

Aliás, li também que o STF chegou a cogitar proibir uso das cores verde e amarelo nas comemorações do Sete de Setembro (mas vermelho pode). O verde e amarelo são cores antidemocráticas? Dessa tese alucinada nem mesmo a imaginação perturbada de Simão Bacamarte seria capaz.

Publicidade

Mas se, pelo poder absoluto e discricionário que detém, o Supremo é o caso mais repesentativo do fenômeno do simão-bacamartismo que tomou conta do país. Não se trata de forma alguma de um caso isolado: é sintoma de uma síndrome maior e, por isso mesmo, mais preocupante.

De repente parece que a sociedade inteira ficou cheia de Simões Bacamarte, seres iluminados que buscam compulsivamente identificar nas pessoas sinais de um tipo particular de loucura – um perigoso desvio antidemocrático, que transforma seu portador em uma não-pessoa, em uma praga a ser exterminada, em um inimigo a esfolar e abater.

O sintoma mais evidente dessa loucura é não votar em determinado candidato, e sim no outro. Onde já se viu uma coisa dessas? É muito fascismo, é algo que coloca a democracia em risco. Temos que criar uma Casa Verde para internar esses loucos, que não entendem que a democracia só vale para um lado: o nosso.

Se não estou eu mesmo ficando louco, não muito tempo atrás era considerado sinal de virtude declarar: “Discordo de você, mas defenderei até a morte seu direito de manifestar seu pensamento”. Hoje o sinal de virtude é dizer: “Você discorda de mim, então seu pensamento é fascista, e por isso irei persegui-lo até a morte”. Posa-se de tolerante para exercer a intolerância.

Está ficando assustador. Como o diagnóstico de loucura antidemocrática pode se basear em uma conversa banal entre colegas de trabalho, amigos ou até parentes, está todo mundo ficando com medo de conversar, dar sua opinião ou expressar sua preferência política. E não é só nos grupos de Whatsapp.

Publicidade

Estamos perigosamente perto de uma situação em que, a não ser que suas opiniões e seu voto coincidam com os dos Simões Bacamartes que ocuparam a universidade, as instituições e a mídia, você não estará livre de acordar com a polícia recolhendo seu celular e seu computador por conta de uma piada que contou no Whatapp ou em conversas privadas.

Os pretextos para a perseguição serão outros, é claro, como o tal “discurso de ódio” (ódio só pode quando é do bem), uma declaração politicamente incorreta ou a violação de alguma nova lei sobre o uso de pronomes neutros. Mas todo mundo sabe que o verdadeiro crime é pensar de forma diferente da deles: isso é inadmissível para os autointitulados defensores da democracia.

Como na Itaguaí de "O Alienista", metade da população está hoje apreensiva, ou mesmo alarmada, mas talvez já seja tarde. E, exatamente como na Itália de Mussolini ou na União Soviética de Stálin, ninguém está livre de ser o próximo. Garanto que o final dessa história não será engraçado como o da novela.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]