Passou quase despercebido o recente lançamento da excelente biografia “O homem que compreendeu a democracia – A vida de Alexis de Tocqueville”, de Olivier Zunz.
Muito citado mas pouco lido, Tocqueville (1805-1859) foi um dos grandes teóricos da democracia na América.
Nascido em Paris, em uma família aristocrática que teve vários membros presos, e executados na guilhotina, durante o período de terror da Revolução Francesa, Tocqueville cresceu acostumado a mudanças de regime político.
Ainda bastante jovem, em 1830, chegou a ocupar um cargo no governo de Louis-Philippe d’Orléans. Mas, no ano seguinte, novas turbulências o fizeram viajar para os Estados Unidos, onde testemunhou com assombro a realidade concreta de uma democracia em funcionamento.
Ele se surpreendeu, por exemplo, com a vocação dos americanos para o "autogoverno em pequena escala", a tendência das pessoas de se associarem voluntariamente para resolver seus problemas: “Os americanos associam-se para fundar escolas, igrejas, difundir livros, construir prisões e hospitais. Na França, preferem exigir que o governo vigie as tabernas”.
A temporada no exílio resultou no clássico ensaio “A democracia na América”, que exalta o avanço da liberdade e da igualdade na sociedade americana, mas também adverte contra os excessos do materialismo e do individualismo.
De volta à França, Tocqueville fez uma breve carreira como político de viés liberal e escreveu outro livro: “O Antigo Regime e a Revolução”, uma original interpretação da Revolução Francesa. Morreu de tuberculose, aos 53 anos.
Em um discurso inflamado na Assembleia Constituinte, no ano de 1848, Tocqueville fez um célebre ataque ao socialismo, com base em três argumentos. Primeiro: o socialismo explora as paixões materiais dos homens, que prevalecem sobre os ideais mais elevados de generosidade e virtude. Segundo: o socialismo solapa o princípio da propriedade privada, vital para a liberdade. Terceiro: o socialismo despreza o indivíduo.
“A democracia e o socialismo não têm nada em comum, exceto uma palavra: igualdade”, explicou. “Mas observe a diferença: enquanto a democracia busca a igualdade na liberdade, o socialismo busca igualdade na restrição e na servidão”.
Tocqueville acreditava que, sob o socialismo, o Estado sufocaria a iniciativa individual, tornando-se o “senhor de cada homem”. Por isso ele acreditava que democracia e socialismo são não apenas incompatíveis, mas opostos: onde houver democracia e liberdade não haverá socialismo, e vice-versa.
Escreve Olivier Zunz:
“A Revolução Francesa pregava a liberdade para todos, o que significava a abolição da divisão de classes. Mas, após a Revolução, as classes mais altas obtiveram privilégios e se tornaram corruptas, enquanto as classes mais baixas, descontentes, era seduzidas pelas ideias socialistas. (...)
“Tocqueville acreditava que o socialismo, ao atiçar os pobres contra os proprietários, só fortaleceria as divisões sociais, enquanto o Estado transformaria os trabalhadores em engrenagens da máquina sufocante do Estado. O estabelecimento de um sistema socialista seria como uma reversão à monarquia pré-revolucionária. (..)
“Com base na sua experiência na América, Tocqueville almejava uma sociedade democrática na qual as empresas pudessem florescer, e onde os pobres e vulneráveis seriam protegidos pela caridade cristã. Apontava como modelo os Estados Unidos, que teriam alcançado a versão mais avançada da democracia.”
O contraste que Tocqueville estabeleceu entre a democracia como liberdade, e o socialismo como servidão, influenciou diversos autores e debates ao longo dos séculos 19 e 20. No final da vida, com a França mais uma vez sob um regime despótico, uma onda de levantes se espalhando pela Europa e os Estados Unidos em Guerra Civil, Tocqueville temia que o experimento democrático estivesse prestes a fracassar.
Frases de Tocqueville:
“Existe, de fato, uma paixão legítima pela igualdade, que estimula todos os homens a desejarem ser fortes e estimados. Essa paixão tende a elevar o menor ao posto do maior. Mas também se encontra no coração humano um gosto depravado da igualdade, que impele os fracos a quererem levar os fortes a seus níveis, e que reduz os homens a preferir a igualdade na servidão à desigualdade na liberdade.”
“Nada é tão perigoso quanto a violência empregada por pessoas bem-intencionadas com objetivos altruístas.”
“Quanto mais vejo a independência da imprensa em seus principais efeitos, mais me convenço de que, entre os modernos, a independência da imprensa é capital e, por assim dizer, o elemento constitutivo da liberdade. Eu não tenho pela liberdade de imprensa esse amor completo e instantâneo que se concede às coisas cuja natureza é inquestionavelmente boa. Eu a adoro por causa dos males que evita muito mais do que pelo bem que faz.”
“É mais fácil para o mundo aceitar uma mentira simples do que uma verdade complexa.”
“Uma das fraquezas mais comuns do intelecto humano é procurar conciliar princípios contrários e comprar a paz à custa da lógica.”
“É realmente difícil imaginar como os homens que renunciaram inteiramente ao hábito de administrar seus próprios assuntos poderiam ter sucesso na escolha daqueles que deveriam liderá-los. É impossível acreditar que um governo liberal, energético e sábio possa emergir das cédulas de uma nação de servos.”
“O homem que pede da liberdade qualquer coisa que não seja ela mesma, nasceu para ser um escravo.”
“Aqueles que valorizaram a liberdade apenas pelos benefícios materiais que oferecem nunca a mantiveram por muito tempo.”
“Por mais vigorosamente que a sociedade em geral se esforce para fazer todos os cidadãos iguais, o orgulho pessoal de cada indivíduo sempre fará com que ele tente escapar do nível comum, e ele formará alguma desigualdade em algum lugar para seu próprio proveito.”
“A república americana durará até o dia em que o Congresso descobrir que pode subornar o público com o dinheiro do público.”
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