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Vou começar citando um texto da pensadora comunista Rosa Luxemburgo – menos conhecido do que deveria, ao que tudo indica:
“Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela justiça, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a liberdade se torna privilégio.”
Ora, até mesmo uma revolucionária de esquerda reconheceu, portanto, a importância da liberdade de divergir, mesmo no socialismo. O que Rosa Luxemburgo pregava – a união entre democracia e marxismo – era uma contradição em termos. Mas isso não tira o mérito da defesa vigorosa que ela fez da liberdade de expressão, em sua curta trajetória (morreu assassinada em 1919, aos 38 anos).
Pois bem, como lembrei no artigo “Sobre a destruição dos livros”, a ditadura do Estado Novo foi a primeira ocasião, na nossa História republicana, em que livros foram destruídos por ordem do Estado, em função de um juízo moral de valor de seus conteúdos.
A segunda ocasião também se deu em uma ditadura: foi durante o regime militar de 1964-1984. Curiosamente, a Constituição de 1967 – como, aliás, a de 1937 – reconhecia o direito à liberdade de expressão, no inciso VIII do artigo 150, que dizia:
"É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou religiosa, a atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer."
Tanto no Estado Novo quanto na ditadura militar, é clara, nas suas respectivas Constituições, a preocupação em preservar as aparências, no que diz respeito à defesa da liberdade de expressão. Mas, ao mesmo tempo em que defendiam esse direito na teoria, com uma das mãos, as duas ditaduras o rasgavam com a outra, na prática.
É bem verdade que, ao promulgarem o Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro de 1968, os generais mandaram às favas a preocupação com as aparências, instituindo abertamente a censura.
A partir daquele momento, livros e quaisquer outros materiais considerados subversivos ou imorais estavam sujeitos a ser recolhidos e incinerados. Isso aconteceu, por exemplo, com obras de Graciliano Ramos e Jorge Amado, mas também com títulos como “O prazer do sexo”, que teve todos os seus exemplares destruídos por ordem judicial, e até mesmo com um livro infantil, “As aventuras de Xisto”, considerado subversivo pelas autoridades.
Até sua revogação, em 1978, o AI-5 eliminou diversas garantias individuais e limitou severamente a liberdade de expressão no Brasil. Mas, oficialmente, o objetivo era nobre: “proteger” a população do contato com ideias que pudessem desestabilizar o país. Os ataques à liberdade eram, assim, justificados pelo argumento do combate a ideologias subversivas, o que tornava admissível a censura prévia de jornais, filmes, peças teatrais e espetáculos musicais.
No caso dos livros, os órgãos de censura realizavam operações de confisco em editoras, livrarias, universidades e até mesmo em bibliotecas públicas. Qualquer obra considerada ofensiva era recolhida e destruída, sempre para proteger a população. São raras as ditaduras que ousam dizer seu nome.
Em um futuro hipotético, seria então aceitável que uma composição conservadora do STF mandasse destruir livros que defendam o aborto, a ideologia de gênero e a liberação das drogas?
Pois bem, que eu saiba, a terceira ocasião, na História da nossa República, em que livros foram destruídos em função de um juízo moral de seu conteúdo, por ordem da Justiça Federal, aconteceu em um período de democracia, ainda que relativa.
Foi na semana retrasada, quando um ministro do STF ordenou o recolhimento e a destruição de quatro obras jurídicas, por incluírem trechos ofensivos a mulheres e minorias: “Curso Avançado de Biodireito”; “Teoria e Prática do Direito Penal”; “Curso Avançado de Direito do Consumidor”; e “Manual de Prática Trabalhista”. Segundo a decisão do ministro, os livros poderão voltar a circular, desde que sejam editados e reimpressos sem os trechos ofensivos.
Atenção! Não se coloca em questão a importância do combate à homofobia, nem da defesa dos direitos das mulheres. A julgar por alguns trechos divulgados, tampouco está em discussão que essas obras contêm mesmo trechos discriminatórios. Em um deles, por exemplo, a homossexualidade é descrita como “anomalia sexual” e “prática doentia”. Outro utiliza expressões que reforçam preconceitos, como “máfia gay”. Um terceiro afirma que “algumas das mulheres mais lindas e gostosas” são “do uso exclusivo dos jovens playboys”.
Cabe lembrar que os livros foram publicados em 2008 e 2009, e nos últimos 15 anos muita coisa mudou em relação ao que é aceitável em termos de linguagem (e não só de linguagem). A Janela de Overton explica. Mas não é este o ponto.
O ponto é que a liberdade de expressão não pode se limitar à circulação de livros sem falhas, virtuosos e politicamente corretos, com os quais todo mundo concorda. Se todos os livros fossem assim, não haveria necessidade de garantia legal para sua proteção. Lembrando o que disse Rosa Luxemburgo, é a liberdade de quem pensa de modo diferente que precisa ser protegida.
A proteção da liberdade de expressão é necessária, justamente, para aquelas ideias e opiniões que julgamos ofensivas, execráveis, imorais. Até porque estes são juízos até certo ponto subjetivos, que mudam com o tempo e estão sempre sujeitos a debates, já que costumam dividir a sociedade. O que é ofensivo para uns pode ser sagrado para outros. Chegarei lá.
A título de ilustração, imagine o leitor que, em um futuro hipotético e não muito distante, o ministro de uma composição conservadora do STF decida mandar recolher e destruir livros que defendam o aborto, a ideologia de gênero ou a liberação das drogas. Para esse hipotético ministro – e, seguramente, para muitos brasileiros – estes seriam conteúdos moralmente nocivos à sociedade. Nem por isso mandar queimar ou destruir livros seria recomendável, porque decisões assim abrem um precedente perigoso.
Passemos a um exemplo mais concreto. Para muitos brasileiros – e, imagino, para muitos ministros do STF atual – os livros de Olavo de Carvalho são ofensivos, preconceituosos, misóginos e homofóbicos. Essa avaliação bastaria para autorizar o Supremo a censurar e mandar destruir todos os exemplares já impressos de todas as obras de Olavo?
Vários trechos da Bíblia podem ser classificados como misóginos e homofóbicos, pois condenam a homossexualidade e pregam a submissão das mulheres. A Bíblia deveria ser retirada de circulação?
Se a resposta for positiva, por que parar em Olavo de Carvalho? Já que o precedente está aberto, diversos autores clássicos da literatura brasileira escreveram obras que contêm trechos classificáveis como ofensivos às mulheres e preconceituosos contra minorias. Por que não submetê-los ao mesmo escrutínio e à mesma pena?
Para citar apenas alguns exemplos de tratamento degradante a mulheres e grupos minoritário sem clássicos da nossa literatura:
- Nos romances “Senhora” e “Lucíola”, de José de Alencar, há trechos claramente misóginos, que descrevem mulheres "decadentes" que são “reabilitadas" por meio do casamento;
- O mesmo acontece em “Dom Casmurro”, de Machado de Assis: Capitu é julgada e condenada por sua suposta infidelidade, reforçando estereótipos machistas;
- Em “Os Sertões”, Euclides da Cunha recorre a expressões sexistas para descrever as mulheres nordestinas;
- Em “A Moreninha”, Joaquim Manuel de Macedo exalta a subserviência feminina nas relações amorosas;
- Em “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo, as personagens femininas são julgadas por seu comportamento sexual, além de haver passagens que tratam das relações homoafetivas em tom pejorativo;
- As obras de Monteiro Lobato contêm estereótipos que refletem racismo e sexismo;
- Em “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, Lima Barreto trata a mulher como figura subalterna, reflexo de uma visão de mundo machista internalizada;
- Em “O Ateneu”, Raul Pompeia trata como perversão qualquer sugestão de afeto entre personagens do mesmo sexo.
Etc.
Por que não censurar e destruir todos esses livros? Eles contêm trechos tão ofensivos quanto as quatro obras jurídicas condenadas à fogueira. Pela lógica, esses clássicos só deveriam poder circular se fossem expurgados todos os trechos eivados de preconceitos, já que a população brasileira precisa ser protegida de conteúdos tão retrógrados.
Mas, de novo, por que parar nos clássicos da literatura?
Parece que o ministro responsável pela ordem de destruição de livros citou, em sua decisão, uma frase bíblica atribuída ao apóstolo Pedro: “Vivam como pessoas livres, mas não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal”.
Ora, há diversos trechos da Bíblia que condenam a homosexualidade e pregam a submissão das mulheres, sendo os mais famosos o Levítico 18:22: "Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação" e o Levítico 20:13: "Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse com mulher, ambos terão praticado abominação; certamente serão mortos; o seu sangue será sobre eles."
Mas os exemplos são vários:
Coríntios 6:9-10: "Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.";
Timóteo 2:11-14: "A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado; mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão.";
Efésios 5:22-24: "Vós, mulheres, sujeitai-vos a vosso próprio marido, como ao Senhor; Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo, a cabeça da igreja; e ele é o salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres estejam em tudo sujeitas a seu próprio marido."
Caberia ao STF retirar de circulação e mandar destruir todos os exemplares da Bíblia?
Conteúdo editado por: Aline Menezes