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Nicolás Maduro
Nicolás Maduro| Foto: Serviço de imprensa do Presidente da Federação Russa/Wikimedia Commons

"Os tribunais superiores, os tribunais supremos e a institucionalidade de grandes países como o México e o Brasil garantiram o funcionamento da democracia. É assim que deve ser. E se assim é por lá, que também seja por aqui. Constituição, lei, ordem e justiça", afirmou o ditador venezuelano Nicolás Maduro em uma live transmitida ontem.

Maduro atribuiu os protestos contra a sua contestada reeleição, que têm levado multidões crescentes às ruas de Caracas e centenas de outras cidades do país, a uma armação da "extrema-direita" golpista. Mais uma vez se espelhou no Brasil, atribuindo ao Poder Judiciário um papel fundamental para garantir o resultado das urnas.

Errado ele não está: quando um ministro do STF diz “Nós derrotamos o bolsonarismo”, ele se coloca de um lado da disputa. Guardadas as proporções, é o que ocorre já há muitos anos no Judiciário da Venezuela, "fechado com Maduro" e instrumentalizado para perseguir opositores políticos e legitimar ações do Executivo. Na democracia venezuelana, os juízes têm lado.

Maduro finge acreditar que as manifestações são compostas por golpistas. Por esse raciocínio, a julgar pelas atas divulgadas pela oposição, dois terços dos venezuelanos seriam golpistas. Só o terço que votou nele defende a democracia.

É apenas um truque, mas um truque com consequências: com o pretexto de, justamente, defender a democracia, o ditador enviou recentemente ao Legislativo uma nova "lei antifascismo", que facilitará a prisão e julgamento de manifestantes e membros da oposição.

Nem precisava. Mesmo sem essa lei, os protestos já resultaram em uma forte repressão por parte do governo: pelo menos 2.400 manifestantes foram presos, 25 pessoas morreram e quase 200 ficaram feridas.

Tudo em nome da defesa da democracia e do Estado de Direito.  

E não é a primeira vez: a eleição de 2018 já tinha sido amplamente contestada, com pencas de denúncias de fraude. Houve grandes manifestações em todo o país, que resultaram na prisão de mais de mil pessoas. E Maduro ficou no poder.

Ditadores como Maduro não admitem o contraditório. Como esperam da sociedade nada menos que a submissão plena, incondicional e irrestrita, enxergam qualquer crítica ou contestação apenas como um embaraço desagradável. Povo nas ruas, nem pensar. Toda dissidência precisa ser desqualificada e reprimida, por meio da força se necessário for - até que essa gente aprenda como funciona uma democracia.

O elogio de Maduro ao STF – apontado como referência e modelo para justificar uma eleição para lá de suspeita – deveria ser recebido como ofensa pelo nosso Judiciário. Afinal de contas, que Corte superior de uma democracia verdadeira se sentiria confortável ao ser citada como exemplo por uma ditadura?  

As declarações de Maduro escancaram algo óbvio: é possível usar o argumento da defesa da democracia para tudo, até mesmo para justificar uma eleição fraudulenta e a perseguição a adversários

Aliás, pouco menos de um mês atrás, o ditador venezuelano elogiou o sistema eleitoral de seu país, que classificou como “o melhor de mundo”, e criticou o governo brasileiro por não auditar as eleições: “Aqui temos 16 auditorias. Em que outra parte do mundo se faz isso? No Brasil não auditam um único registro”.

Como assim? Maduro colocou em dúvida o sistema eleitoral do Brasil? E não foi enquadrado em nenhum inquérito? É uma pergunta retórica.

Mas o problema maior é o seguinte: embora - ainda - existam diferenças significativas entre a Venezuela e o Brasil, as declarações de Maduro escancaram algo óbvio: é possível usar o argumento da defesa da democracia para tudo, até mesmo para justificar uma eleição fraudulenta e a perseguição a adversários.

As palavras não valem mais nada. Fascismo, censura, liberdade de expressão, discurso de ódio, Estado de Direito, fake news etc. Na Venezuela como no Brasil, são todas expressões completamente esvaziadas de sentido.

Parece que a linguagem vai aos poucos se descolando da realidade. Autoridades não se sentem mais obrigadas a agir de forma coerente com seu discurso – a ponto de, não muito tempo atrás, uma ministra achar natural afirmar que a censura é inadmissível e, em seguida, votar a favor da censura prévia de um documentário.

Enquanto isso, no país que Maduro aponta como modelo, as denúncias em série publicadas pela “Folha de S.Paulo” sobre supostos abusos cometidos pelo STF não merecem resposta mais elaborada que um copia-e-cola: todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados. Tudo normal, vamos mudar de assunto?

Mas é preciso que se diga que a grande mídia tem sua parcela de responsabilidade nesse processo. Tanto o jornalismo se curvou a interesses econômicos e políticos, nos últimos anos, que hoje, quando um grande jornal tem um surto de independência e ousa contestar, investigar, denunciar, é tratado com desprezo, como um embaraço desagradável. E pensar que o jornalismo já foi chamado de “quarto poder”...

Voltando a Maduro: como a brasileira, a Constituição venezuelana também garante a liberdade de expressão. Letra-morta. Na prática, qualquer cidadão sabe que pode ser preso se ousar exercer esse direito. As redes sociais são vigiadas, digo, reguladas: usuários que criticam o ditador são alvos de intimidação e ações judiciais.

O governo monitora e, eventualmente, bloqueia o acesso a sites e plataformas que disseminam informações consideradas contrárias ao regime.

Na Venezuela, a censura é uma ferramenta abertamente utilizada para silenciar a oposição e controlar a narrativa. Isso inclui o fechamento de veículos independentes de mídia e a perseguição aberta a jornalistas.

A mídia estatal e pró governo domina a paisagem da informação, e muitos cidadãos enfrentam represálias legais ou são vítimas de violência por expressarem opiniões contrárias.

Como eu disse, ainda existem diferenças significativas entre a Venezuela e o Brasil. Mas que está ficando parecido, está. Chegaremos lá?

Conteúdo editado por:Aline Menezes
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