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Se entendermos censura como a restrição, por parte de governos ou autoridades, da livre circulação de ideias, informações e opiniões, a conclusão necessária é que o bloqueio ao X no Brasil, sejam quais forem as justificativas alegadas, foi na prática um ato de censura, talvez o maior de nossa história.
Foi, em todo caso, um ato sem precedentes, que afeta diretamente a liberdade de expressão – protegida pela Constituição – de 22 milhões de brasileiros que usavam a plataforma. Isso desconsiderando, claro, a opção de usar VPN, se tornar formalmente um criminoso e receber uma multa diária de R$ 50 mil.
Mas, se a intenção era perseguir e calar meia dúzia de jornalistas que teimam em escrever o que pensam, o que já seria por si só absurdo, o preço a ser pago pela medida pode ser demasiadamente alto. Como veremos adiante, o custo total da suspensão da plataforma para o Brasil será muito maior que o custo moral da supressão sumária da liberdade de expressão.
Há, contudo, um aspecto nesse episódio que não tem recebido a devida atenção. Esses 22 milhões de brasileiros não foram impedidos somente de se expressar: eles foram sumariamente proibidos de ler e acessar informações relevantes nas mais diversas áreas, sobre os mais diversos assuntos, que não circulam em outras plataformas.
A liberdade violada não foi apenas a de se expressar: tão ou mais importante, a liberdade de receber informações foi igualmente suprimida. Do dia para a noite, puseram uma venda nos olhos de 22 milhões de brasileiros.
É o efeito tapa-olho, tão grave quanto o efeito mordaça.
Diante do horror da censura, tendemos a pensar apenas na mordaça, e é compreensível. Afinal de contas, o bloqueio do X, decretado já há 10 dias, viola o direito das pessoas de se expressar livremente, reprime manifestações contrárias aos poderosos de plantão, cala vozes que fazem oposição a determinada agenda, suprime críticas e silencia opositores.
Mas não é só isso. O tapa-olho é igualmente grave.
O X era muitas vezes o canal preferencial, quando não exclusivo, de circulação de informações relevantes para toda a sociedade. Comunidades de interesses que usavam a plataforma como fonte de dados e veículo de troca de informações - incluindo a comunidade científica - foram imensamente prejudicadas. A não ser que burlem a lei, agentes econômicos e financeiros que acessavam diariamente o X como fonte rápida de dados cruciais sobre a movimentação dos mercados passaram a trabalhar às cegas.
Ou seja, talvez o efeito mais deletério do bloqueio ao X não tenha sido cassar a palavra de 22 milhões de brasileiros – dos quais 99%, diga-se de passagem, sequer se manifestavam sobre política na plataforma - mas foi vendar seus olhos. A rigor, quem teve a palavra cassada no Brasil foram figuras relevantes da política internacional, da economia, da ciência, da cultura, em suma, de todas as áreas.
Neste exato momento, Donald Trump e Kamala Harris devem estar postando mensagens de interesse. Mas não temos como saber, porque, no que diz respeito ao X no Brasil, eles estão tão censurados quanto eu e você
Na ditadura militar, a repressão à liberdade de expressão foi uma estratégia adotada por governos com poderes absolutos para reprimir qualquer manifestação considerada subversiva. Mas o controle se dava sobre conteúdos específicos transmitidos por jornais, rádios, televisões, ou sobre músicas, peças de teatro e livros, ou sobre determinadas figuras públicas.
Não se estendia ao cidadão comum a censura, nem dele se dizia que estava censurado. Não se censuravam os consumidores de conteúdos. Censuradas eram determinadas notícias, opiniões e obras artísticas, e determinadas pessoas, cujas ideias e opiniões não se tinha mais acesso.
O bloqueio do X vai muito além: ele não apenas censura previamente (e absolutamente) dezenas de milhões de brasileiros comuns, impedidos que estão de falar (incluindo muitos que falariam em defesa do STF e do governo, diga-se de passagem).
Ele censura, no sentido de tornar inacessíveis, não conteúdos específicos, mas todos os conteúdos de todos os usuários do X em todo o planeta. Isso inclui as instituições que têm e utilizam perfis no X, como o governo dos Estados Unidos e dos países europeus, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e outras instituições econômicas internacionais, até a própria ONU. No que diz respeito ao X no Brasil, são eles que estão censurados.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) também: se estourar uma nova pandemia e a OMS postar no seu perfil no X, os brasileiros não ficarão sabendo. O absurdo é ainda maior: os próprios perfis institucionais do governo brasileiro no X estão censurados - inclusive o perfil do STF, usado para intimar o X no próprio X.
O bloqueio também censura, por exemplo, Donald Trump e Kamala Harris, que farão hoje à noite um debate decisivo para a eleição presidencial americana. Ambos devem estar postando, neste exato momento, mensagens relevantes no X – mensagens de interesse, inclusive, do governo brasileiro. Mas não temos como saber, porque, no Brasil, Trump e Kamala estão censurados, no que diz respeito ao X. Tão censurados quanto eu e você.
O impacto do bloqueio no debate público é, portanto, evidente. A própria grande mídia, que alimentou o monstro da censura enquanto interessava a ela, usava diariamente o X para como fonte de informações em tempo real. Sem essa fonte, cai inevitavelmente a qualidade da informação, o que acabará resultando em perda de receita e audiência.
Resta, é claro, a solução ridícula e hipócrita de usar “correspondentes internacionais” para continuar acessando o X como fonte. É assim que funciona: eles apoiam a censura e depois dão um jeitinho de burlá-la. É um deboche.
Por fim, o bloqueio também tem efeitos econômicos significativos. O impacto na transparência e na fluidez de informações afeta mercados, já que decisões de investimento e comércio eram diretamente afetadas por notícias e discussões veiculadas no X. Por exemplo, no setor de publicidade digital e comércio eletrônico, incontáveis pequenas e médias empresas dependiam do marketing e da interação com clientes pela plataforma.
O bloqueio do X também mina a confiança de investidores internacionais no ecossistema digital brasileiro e deve provocar uma retração no setor de inovação. O aumento do controle governamental sobre a internet e as plataformas digitais faz o Brasil passar a ser visto como um país que interfere indevidamente nas atividades de empresas de tecnologia.
Empresas internacionais já estão reconsiderando seus investimentos no país, diante do risco explícito de bloqueios ou restrições governamentais de plataformas globais. Isso afasta investimentos em startups, em empresas digitais e na tecnologia de ponta. Os efeitos só aparecerão lá na frente.
Todo esse prejuízo não está sendo imposto ao X. Está sendo imposto à sociedade brasileira, com tapa-olho e mordaça.
Conteúdo editado por: Aline Menezes