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Nos últimos dias houve um acirramento claro da polarização nas redes sociais, e não foi por acaso. Falas surpreendentes da primeira-dama e da presidente do partido ora no poder só serviram para jogar gasolina na fogueira do embate político.
E o próprio presidente da República afirmou com todas as letras, em um evento do PT: “Eleição de 2024 será outra vez entre Lula e Bolsonaro”. É um reconhecimento de que seu antípoda continua politicamente vivo e forte, apesar do massacre promovido contra ele ao longo de 2023.
Tudo indica se tratar de uma estratégia deliberada, que antecipa o início da campanha das eleições municipais de 2024 e anuncia o que virá pela frente: a aposta renovada na radicalização, na divisão dos brasileiros em “nós” e “eles” e no “ódio do bem” – tudo justificado pela narrativa da defesa da democracia e do combate ao fascismo.
Mas a aposta na reedição da agressividade da campanha eleitoral de 2022 não parece uma atitude prudente para um governo que chega ao final de seu primeiro ano enfrentando problemas em série.
Mesmo as pesquisas dos institutos mais enviesados à esquerda sinalizam uma tendência consistente de queda na popularidade não apenas do próprio presidente como também do STF.
Aliás, era previsível: se o Supremo é percebido pela sociedade como um aliado do governo – percepção reforçada por reiteradas declarações dos próprios ministros (“Nós derrotamos o bolsonarismo”, “Se tivemos eleição do Lula, isso se deveu a decisão do STF” etc) – é natural que a popularidade do STF esteja atrelada à popularidade do governo. Quando uma cai, a outra cai também.
O efeito colateral e perigoso desse processo é que o jogo político contamina a crença da sociedade em instituições que deveriam ser neutras. A pergunta é: até que ponto será conveniente ao STF manter essa aliança, em caso de eclosão de uma crise econômica e social profunda?
O mesmo raciocínio se aplica a outro ator relevante da política, a grande mídia. É notório que importantes veículos de comunicação abriram mão de sua credibilidade e hoje trabalham como assessoria de comunicação do governo – impressão reforçada pela radical e despudorada (grotesca, em alguns casos) mudança de discurso de diversos jornalistas famosos.
Mas já pipocam, aqui e ali, sinais de que parte dessa grande mídia prepara um desembarque, caso a situação se deteriore. Mudanças sutis na linguagem e nas pautas indicam a exaustão da narrativa da defesa da "democracia de um lado só".
A percepção de que o STF é um aliado do governo contamina a confiança da sociedade em instituições que deveriam ser neutras
Não é só isso. O apoio declarado durante a campanha de 2022 era condicional – como aliás foi condicional o voto de uma parcela decisiva do eleitorado. Quando expectativas não são realizadas e promessas não são cumpridas, esse apoio pode se esvair mais rápido que água entre os dedos.
E, pelo menos segundo esta análise do Estadão, o presidente já perdeu no primeiro ano de governo a parcela do eleitorado que foi decisiva para sua eleição.
Apostar em um terceiro turno não parece prudente porque o contexto já é outro, bem menos favorável à esquerda que em novembro do ano passado. E, a julgar pela evolução dos indicadores econômicos, a situação tende a piorar ao longo dos próximos 11 meses.
Outro fator a considerar é a resiliência da popularidade de Bolsonaro. Mesmo declarado inelegível (mas no Brasil nunca se sabe, as coisas mudam) e mesmo submetido a uma perseguição implacável e a uma campanha de desqualificação ininterrupta, o ex-presidente continua arrastando pequenas multidões por onde passa – até mesmo em Buenos Aires, onde foi ovacionado nas ruas e recebeu tratamento de chefe de Estado na posse de Javier Milei.
(A vitória de Milei, aliás, é prova de que narrativa nenhuma sobrevive à destruição da economia de um país, à explosão da pobreza, da inflação, do desemprego e da violência. Deveria servir de alerta.)
A popularidade das ruas é um sinal inequívoco de que a estratégia de tentar cancelar Bolsonaro, de criminalizá-lo e transformá-lo em uma não-pessoa, em um pária político, não deu certo: foi uma pregação que não convenceu ninguém além dos já convertidos.
Neste cenário, teimar na estratégia da estigmatização de metade do eleitorado e apostar no terceiro turno nas eleições municipais de 2024 é correr o risco de uma derrota que, caso aconteça, poderá tornar o Governo, em sua segunda metade, ainda mais refém do que já é hoje do apetite insaciável do Congresso. E o pior é que esta pode ser uma boa notícia.
A própria presidente do PT já admitiu: “Se a popularidade de Lula cair, o Congresso vai engolir a gente”. Já o líder do governo na Câmara defendeu abertamente que, para vencer a eleição, vale sacrificar até a estabilidade econômica: “Se tiver que fazer déficit, vamos fazer, ou a gente não ganha a eleição”.
Essas declarações não são casuais, nem teriam sido feitas sem aprovação superior. Nesse contexto, alguém ainda acredita na seriedade do compromisso do governo com o déficit zero e o equilíbrio fiscal?
A percepção crescente de estagnação e mesmo de uma crise econômica (ainda que nem sempre refletida nos números oficiais) leva à descrença na disposição e na capacidade de uma gestão responsável da economia.
O desequilíbrio fiscal deve levar à fuga de investimentos, com o receio da reedição de práticas do governo Dilma – que resultaram na pior recessão atravessada pelo país em muitas décadas, vale lembrar.
O medo de se manifestar se tornou companheiro de metade da população brasileira, o que não parece normal em uma democracia
Por outro lado, desnecessário dizer, aumentos de impostos também costumam afugentar eleitores e investidores – e não estão trazendo o aumento de arrecadação aguardado: a Curva de Laffer importa.
Enquanto isso, a adesão entusiasmada à agenda ESG gera cada vez mais desconfiança, por atrapalhar o crescimento do país e comprometer a nossa soberania, colocando em risco a própria autonomia do Legislativo.
Paradoxalmente, apesar do discurso, as queimadas só aumentam – mas agora contam com o silêncio obsequioso de Greta e Leonardo e das ONGs do ramo. E a própria esquerda se divide, por exemplo, em relação à exploração do petróleo na foz do Amazonas.
Outros episódios recentes que devem afetar o humor do eleitorado são, primeiro, a explosão da violência urbana em diversas capitais (que promete se agravar neste verão), que corrói o apoio da classe média e mesmo da população mais pobre, que é sempre quem mais sofre com a insegurança.
Segundo, a repercussão da morte anunciada de Clériston Pereira da Cunha, o Clezão, na Papuda, após 10 meses de prisão preventiva, sem julgamento, sugere que a manutenção no cárcere de centenas de manifestantes do 8/1 virou um problema.
Os presos de 8/1 já não rendem mais nenhum dividendo político, ao contrário: só reforçam no cidadão comum a impressão de um abuso de poder. Principalmente quando ele lê no noticiário que um líder de facção condenado a 70 anos por homicídio e tráfico de drogas foi colocado em liberdade “por falta de vagas no sistema prisional”.
Mesmo para muitos eleitores que odeiam Bolsonaro, não parece se tratar de uma situação normal em uma democracia. A indignação só não é mais visível – ainda – pelo medo que as pessoas sentem de represálias.
O medo de se manifestar, aliás, passou a ser companheiro constante de metade da população brasileira, o que também não parece normal em uma democracia.
O medo afeta inclusive jornalistas e veículos de comunicação, que precisam medir as palavras o tempo inteiro para não correrem o risco de ter a conta bancária bloqueada e o passaporte cancelado, no caso dos profissionais; ou de serem responsabilizadas por declarações de entrevistados, no caso das empresas.
Na cabeça de muitos brasileiros, as marcas do primeiro ano do novo governo são crise econômica, restrições à liberdade de expressão, abusos do Judiciário e explosão da violência: nada de bom pode vir desta receita.
Às vésperas de um ano eleitoral, este seria o momento de tentar construir pontes e pacificar minimamente o país. Mas talvez não haja mais tempo para isso – e disposição nunca houve.