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Luciano Trigo

Luciano Trigo

“O tráfico negreiro foi uma criação do mundo árabe-muçulmano”

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Comparando dois tráficos de escravos africanos – o transatlântico, instituído pelos europeus a partir de meados do século 17 e encerrado no início do século 19, e o árabe muçulmano, que durou mais de 13 séculos - o antropólogo e economista franco-senegalês Tidiane n’Diaye escreve: “Embora não existam graus no horror nem monopólio da crueldade, podemos afirmar, sem risco de equívoco, que o comércio negreiro e as expedições guerreiras lançadas pelos árabes muçulmanos foram, para a África negra e ao longo dos séculos, muito mais devastadores do que o tráfico transatlântico”. O texto está no livro “O genocídio ocultado – Investigação histórica sobre o tráfico negreiro árabe-muçulmano”, publicado originalmente na França em 2008 e já traduzido em Portugal, mas ainda inédito no Brasil.

Rigorosamente fundamentado e fartamente documentado, “O genocídio ocultado” investiga um tema-tabu, estranhamente ignorado pelos historiadores do Ocidente: o cruel comércio humano instituído pelos muçulmanos na África vários séculos antes da chegada dos invasores europeus – aos quais, aliás, esse comércio serviu de modelo. Como demonstra o autor, já no início da expansão do Islã, no século 7, o emir e general árabe Abdallah ben Saïd impôs aos sudaneses a captura e entrega periódica de milhares de cativos, que seriam em sua maioria castrados e (aqueles que sobreviviam) tratados como animais.

O primeiro texto conhecido que trata da escravidão dos africanos subsaarianos pelos árabes data do ano de 652: “Haveis de entregar, todos os anos, 360 escravos de ambos os sexos, que serão escolhidos entre os melhores do vosso país e enviados ao ímã dos muçulmanos. Todos deverão estar isentos de problemas. Não devem ser apresentados velhos decrépitos, idosas ou crianças com idade inferior à puberdade”).

Durante os dez séculos seguintes, o tráfico negreiro foi exclusividade árabe, período no qual se estima que 17 milhões de africanos foram capturados, castrados e deportados para o mundo árabe-muçulmano, como carne humana, em condições medonhas. O objetivo da castração, prática generalizada, era a extinção étnica: evitar que os escravos gerassem descendentes - daí o emprego justificado da palavra “genocídio” no título do livro. Segundo o autor, 80% dos escravos morriam durante o procedimento de castração, o que amplifica a dimensão da tragédia humana.

<br />Tidiane N'Diaye, autor de 'O genocício ocultado'

O próprio N’Diaye sublinha que o termo “genocídio” não se aplica ao tráfico europeu, já que um escravo, mesmo desumanizado e tratado como bicho, tinha valor de mercado e era uma forma de capital que não fazia sentido eliminar: “ Só falo de genocídio para descrever o comércio de escravos trans-saariano e oriental. No Novo Mundo, a maioria dos (escravos) deportados assegurou mais de 70 milhões de descendentes, que hoje vivem lá. O comércio árabe-muçulmano de escravos deportou 17 milhões de pessoas que tiveram apenas 1 milhão de descendentes, por causa da maciça castração praticada durante 14 séculos.”

“Como Fernand Braudel apontou, o tráfico de escravos não foi uma invenção diabólica da Europa”, afirma o autor. “São os muçulmanos árabes que estão na origem e o praticaram em grande escala. Se o tráfico atlântico durou de 1660 a 1790, os muçulmanos árabes atacaram os negros do sétimo ao vigésimo século e foram os únicos a praticar o tráfico de escravos”.

Vale a pena assistir, nos links abaixo, a duas entrevistas do autor de “O genocídio ocultado”, Tidiane N’Diaye:

Segunda entrevista:

E também a este pequeno documentário sobre a escravidão e o tráfico instituídos pelos árabes na África:

Falando sobre o processo de conquista, submissão e islamização da África pelos povos árabes, o autor prossegue: “A conquista do continente negro inaugura a era da devastação permanente de povoações e de terríveis guerras santas conduzidas pelos convertidos para obter cativos”. E pergunta: “Então por que muitos autores desejam ignorar esse tema, restringindo o campo das suas investigações sobre os tráficos negreiros ao que foi praticado pelas nações ocidentais?” A denúncia corajosa do silêncio dos historiadores e intelectuais do Ocidente sobre o genocídio árabe-muçulmano na África é um dos méritos do livro.

E também a este pequeno documentário sobre a escravidão e o tráfico instituídos pelos árabes na África:

Evidentemente, N’Diaye reconhece que o tráfico europeu foi uma calamidade e precisa ser lembrado como um capítulo sombrio da História; mas esse tráfico durou menos de dois séculos e terminou por decisão dos países que o praticavam - e hoje repudiam qualquer forma de escravidão. Já o tráfico muçulmano começou no século 7 e, em alguns casos, perdura até hoje, sem que tenha havido qualquer autocrítica por parte dos países que o adotaram:

“Se tiveram lugar no Ocidente movimentos abolicionistas para pôr fim ao tráfico transatlântico, (...) não se encontram resquícios de iniciativas equivalentes no mundo árabe-muçulmano, nem qualquer arrependimento até os dias de hoje. Como a escravidão é validada e institucionalizada pelo Islã, teria sido ímpio que os árabes a pusessem em causa. (...) E a ignomínia imposta aos povos africanos não foi objeto de nenhuma contestação por parte dos intelectuais árabes”.

"Como a escravidão é validada e institucionalizada pelo Islã, teria sido ímpio que os árabes a pusessem em causa"

N’Diaye vai além, afirmando que, em muitos países africanos, foi a colonização europeia que impôs o fim do comércio muçulmano de escravos. Mas esse comércio persiste até hoje em Darfur, no Oriente Próximo, na Líbia, em partes do Sudão e na África do Sahel (especialmente na Mauritânia), lugares onde a escravidão e o tráfico de negros ainda são práticas correntes, ainda que formalmente ilegais. Mas contra escravidão praticada ainda hoje por muçulmanos nenhum progressista faz protesto. Por quê?

Um aspecto original de "O genocídio ocultado" é a rejeição à tese de que já existiam escravidão e tráfico na África mesmo antes da chegada dos árabes. O autor admite que havia, sim, um sistema de servidão no continente, mas ressalta que esse sistema não se enquadrava na lógica comercial instituída pelos árabes (e mais tarde copiada pelos europeus), o que lhe conferia traços particulares e distintos (sem falar na escala muito menor com que foi adotado). Por exemplo, antes da chegada dos árabes os cativos eram integrados nas famílias africanas e não podiam ser vendidos – e podiam ascender socialmente se demonstrassem determinadas habilidades, como guerreiros.

Ou seja, era um status bem diferente daquele do escravo tal como entendemos hoje o conceito: “Antes da chegada dos árabes, não existia na África tal organização, tão mercantil quanto maquiavélica. O continente só produzia cativos para uso interno. Contrariamente ao que se passava no Mediterrâneo, o continente negro não conhecia a escravatura como sistema de exploração econômica e social”.

Por outro lado, o autor admite a cumplicidade de muitos africanos com a escravidão: “A triste realidade é que negros entregaram outros negros. Quando os árabes caçadores de homens chegavam, a maioria dos vendedores de escravos era formada por negros”, escreve. “É apropriado reconhecer e aceitar o envolvimento dos africanos nesse doloroso capítulo de sua História”.

Outra tese ousada de N’Diaye é que os invasores árabes-muçulmanos não foram apenas pioneiros no tráfico e na escravidão de africanos, mas também na invenção do racismo. Citando inúmeras fontes, o autor demonstra que a desqualificação nos negros fez parte de uma estratégia deliberada de hierarquização das raças adotada pelo Islã. Nesse sentido, foi a escravidão que levou ao racismo, que é uma construção ideológica, e não o racismo que originou a escravidão, uma vez que outras etnias foram escravizadas ao longo dos séculos, sem que sobre elas se tenha abatido a prática vergonhosa do racismo.

Conclusão de N’Diaye: “Somos obrigados a reconhecer que a dimensão alcançada pelo tráfico e pela escravidão sofridos pelos povos negros supera – em número de vítimas, em duração, em horrores – tudo o que sucedera até então. E na gênese dessas desgraças, historicamente, o tráfico negreiro é uma invenção do mundo árabe-muçulmano”

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