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Odiar a burguesia, esfolar o patrão: de quem parte o discurso de ódio?
| Foto: Reprodução Instagram

“Uma das tarefas fundamentais da gente é estimular o ódio de classe, é acordar todo dia querendo esfolar o patrão. (...) Tem que acordar todo dia querendo pegar pelos cabelos cada um daqueles ministros do STF (...), o presidente da Câmara dos Deputados, presidente do Congresso, tem que odiar, tem que xingar. Tem que ver uma foto e ter raiva, ter vontade de cuspir, tem que odiar a burguesia brasileira e seus representantes.”

A fala está no vídeo abaixo, gravado no Sindicato da Construção Civil de Fortaleza e postado na última sexta-feira pelo próprio orador, em seu canal no Youtube:

Não deixa de ser surpreendente que, em pleno 2021, ainda existam militantes presos a uma concepção do comunismo revolucionário do século 19 – aliás, tornada obsoleta pelos próprios desdobramentos da Revolução Soviética: basta lembrar que, já em 1920, Lenin criticava o voluntarismo primitivo de certa esquerda, no livro “Esquerdismo, a doença infantil do Comunismo”.

Isso para não falar nas ideias de Gramsci, muito mais relevantes e úteis para se entender o projeto e a estratégia da esquerda hoje que os próprios textos de Marx e Lenin. Mas é o próprio Lenin quem afirma, em “Esquerdismo, a doença infantil do Comunismo”: “O erro maior que podem cometer os revolucionários é olhar para trás, para as revoluções do passado, enquanto a vida nos oferece toda uma longa série de elementos novos, que é necessário incorporar ao quadro geral dos acontecimentos.”

Ignorando esse conselho, o orador evoca com evidente nostalgia a iconografia do movimento operário do final do século 19, que exortava os operários a odiar seus patrões. Mas o mundo mudou muito, e esse tempo não volta mais: pretender enxergar uma unidade de classe entre todos os trabalhadores – e, pior ainda, acreditar que o propósito comum dessa classe é exterminar a “burguesia” – soa apenas como um fantasia adolescente, ou como a letra de uma canção de Cazuza.

O orador fala como se ainda estivéssemos vivendo no século retrasado, em uma sociedade dividida claramente entre uma burguesia malvada detentora dos meios de produção e uma imensa classe proletária, cujo único papel no mundo era ser explorada – e que deveria, portanto, se unir contra os patrões opressores, atendendo assim ao apelo feito nas primeiras linhas do “Manifesto Comunista”.

(O sonho de certa esquerda e viver em um mundo assim, porque é em um mundo assim que ela se cria. Outra esquerda, mais esperta e sofisticada, já saltou do barco da luta de classes para abraçar as bandeiras identitárias; aliás, ela se associou aos antigos inimigos e está conseguindo se criar muito bem.)

Em uma sociedade capitalista, o trabalhador tem o direito e a liberdade de odiar seu patrão, pedir demissão e procurar outro emprego. Mas como exercer esse direito em uma sociedade na qual o único patrão é o Estado?

Desnecessário dizer, não estamos na Inglaterra da Revolução Industrial, o contexto no qual as ideias de Marx faziam sentido. Não é mais assim (se é que um dia foi) que as coisas funcionam: o objetivo das classes trabalhadoras hoje não é destruir o sistema: é se integrar, ascender socialmente, consumir cada vez mais e viver cada vez melhor.

Mas, mesmo deixando de lado tudo isso, fica a pergunta: em uma sociedade capitalista, o trabalhador pelo menos tem o direito e a liberdade de odiar seu patrão, pedir demissão e procurar outro emprego. Mas como exercer esse direito e essa liberdade de odiar o patrão e procurar outro serviço em uma sociedade na qual o único patrão é o Estado, como aliás defende o partido no qual o orador milita?

De qualquer forma, o ódio é um sentimento muito ruim. Pessoas que acordam odiando e querendo esfolar alguém não são revolucionárias, são infelizes. Somente quem está desesperado ou psicologicamente perturbado pode encontrar no ódio uma razão de viver: nenhum trabalhador do século 21 se sentirá atraído por essa conversa.

Mas é possível identificar outros problemas e contradições na breve fala do orador. Por exemplo, quando prega o ódio aos ministros do STF. Neste ponto, curiosamente, ele se alinha involuntariamente ao bolsonarismo, pois ninguém hoje no Brasil odeia mais os ministros do Supremo que os aliados e eleitores de Bolsonaro. O mesmo se aplica ao Legislativo.

O orador também justifica sua defesa do ódio com o fato de o Brasil ser um dos países mais violentos do mundo – parecendo acreditar, estranhamente, que violência se combate com o ódio.

Mas ele esquece, convenientemente, que o número de homicídios e mortes violentas no país atingiu seus picos em um governo de esquerda: esse índice aumentou ano após ano até 2016 – ano em que, com a marca histórica de 62.517 mortes violentas, foi superado – pela primeira vez na História deste país – o patamar de 30 homicídios por 100.000 habitantes (segundo dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

Já no governo genocida que todas as pessoas "do bem" têm a obrigação moral de odiar, os números foram os seguintes:  47.773 mortes violentas em 2019; (queda de 17,7% em relação a 2018); e 43.892 em 2020 (um aumento irrisório, considerando a gravidade da retração econômica provocada pela eclosão da pandemia). E, no primeiro semestre de 2021, os assassinatos já caíram 8%. Mas isso quase ninguém noticia.

Ou seja, nos últimos anos de um governo que se dizia de esquerda o número de mortes violentas ultrapassou 60.000; nos primeiros anos de um governo classificado como genocida e de direita, este número caiu para a faixa dos 40.000, mesmo com os graves impactos da pandemia. Mas, na lógica do orador, será um governo de esquerda que resolverá o problema da violência. E o caminho para a paz será o ódio. Duplipensar, a gente vê por aqui.

O orador lamenta que centenas de milhares de brasileiros pobres estejam encarcerados, “nessa p***a de Estado democrático de Direito”, pelo furto de um celular ou pelo porte de drogas. Mas faltou ele se revoltar também contra a outra face da Justiça brasileira: aquela que protege corruptos, que volta atrás em decisões já tomadas, que liberta réus já condenados em segunda instância para que possam e candidatar nas eleições; aquela que, na prática, cancela e destrói na base de canetadas a liberdade de expressão e joga na lata de lixo a operação Lava-Jato, que foi um marco reconhecido internacionalmente no combate à corrupção no Brasil.

Por fim, o orador afirma, com todas as letras: “No movimento social, no sindicalismo, na luta pela terra, na luta pela reforma urbana, política não é diálogo, nunca foi”. É a contradição recorrente da turma do “ódio do bem” (e da narrativa progressista que a esquerda brasileira decidiu adotar): negar-se ao diálogo e chamar o adversário de intolerante; censurar, perseguir e esfolar o adversário e acusar o adversário de fascismo; defender abertamente o ódio como “afeto” – e acusar o adversário de discurso de ódio; se declarar defensor da democracia e negar ao adversário o próprio direito à existência.

É a velha máxima, que alguns atribuem a Lenin, sendo colocada em prática diariamente em nosso país: “Acuse-os do que você faz, chame-os do que você é”. Nada de bom pode vir daí.

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