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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Os mitos sobre a ascensão da direita e o populismo de Bolsonaro

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Em “Nacional-populismo – A revolta contra a democracia liberal”, os cientistas políticos Roger Eatwell e Matthew Goodwin fazem um diagnóstico interessante da guinada à direita que se observou no planeta na última década, dando atenção particular a dois episódios representativos desse processo: a eleição de Donald Trump e a vitória do Brexit. Apesar do viés progressista de algumas análises, os autores desafiam as interpretações convencionais e evitam jogar para a arquibancada. Talvez por isso mesmo, o livro vem gerando bastante controvérsia (ao menos nos países onde livros ainda são lidos e suscitam debates relevantes).

Eatwell e Goodwin são claramente críticos do nacional-populismo, ideologia na qual enxergam potenciais riscos ao futuro da democracia, mas dá para dizer que, no exame dos países europeus que conhecem bem (e, em menor medida, na análise do caso americano), eles mais acertam do que erram. Sua argumentação é honesta e bem fundamentada, em um esforço sincero de interpretação baseado em dados estatísticos, e não apenas no “achismo”: “Contrariamente à alegação de que se trata de uma nova forma de Fascismo, o nacional-populismo luta por uma nova forma de democracia, na qual os interesses e as vozes das pessoas comuns sejam mais proeminentes”, escrevem.

Os autores evitam assim os clichês e caricaturas dos políticos e eleitores conservadores tão frequentes na mídia brasileira. Em vez de demonizar (e rotular como fascistas, nazistas etc) quem votou em candidatos de direita, os autores procuram entender as motivações desse eleitorado, que reconhecem como legítimas – coisa da qual a esquerda brasileira é incapaz. Criticam, também, a estratégia de desqualificação que só serve para entrincheirar e polarizar cada vez mais a sociedade.

“Não vemos líderes como Trump, Bolsonaro, [Marine] Le Pen ou [o holandês Geert] Wilders como fascistas”, escrevem. “Defendemos que eles são nacional-populistas (...) O nacional-populismo é uma ideologia que prioriza a cultura e os interesses da nação e promete dar voz a pessoas que sentem que foram negligenciadas e mesmo desdenhadas por elites distantes e corruptas”. E concluem: “Longe de ser antidemocrático, o populismo é uma resposta às contradições no interior da democracia liberal, cada vez mais baseada em elites (...) cujos valores são fundamentalmente diferentes daqueles da sociedade que eles governam. (...) Desdenhar dos apoiadores nacional-populistas como se fossem todos ignorantes preconceituosos é um grande erro”.

Para desespero dos leitores de esquerda, os autores afirmam que não se trata do último suspiro de uma geração de velhos brancos conservadores e raivosos que logo irão morrer e serão substituído por jovens millenials tolerantes e do bem: ao contrário: todas as estatísticas sobre a relação entre o voto e a pirâmide etária na Europa demonstram que essa onda veio para ficar, com a direita conquistando cada vez mais adesões entre as gerações mais jovens.

para ficar, com a direita conquistando cada vez mais adesões entre as gerações mais jovens.

Sobre a questão racial hoje onipresente, Eatwell e Goodwin rejeitam a associação fácil e enganosa entre direita e racismo: “Não achamos que nossas sociedades estejam se tornando mais racistas. Analisando as evidências, vemos que, em muitos países, o racismo declarado na verdade está em declínio. Mas muitas pessoas se sentem ansiosas com as mudanças, talvez irrevogáveis, em sua comunidade e nação. Os nacional-populistas estão atraindo intensamente pessoas que partilham de crenças legítimas sobre os riscos culturais demográficos e culturais criados por essa rápida mudança”.

Os autores demonstram, por exemplo, que o voto pelo Brexit foi significativamente maior nas cidades inglesas mais impactadas pela imigração (mas a simples constatação desse fato é hoje passível da acusação de racismo). Parece óbvio que levas descontroladas de imigrantes e refugiados com pouca ou nenhuma qualificação (e com valores e costumes totalmente diferentes dos cidadãos locais) têm impactos sociais, culturais e econômicos negativos na sociedade – mas também o óbvio é hoje passivo de denúncias politicamente corretas pelos lacradores de plantão.

Muitos europeus estão migrando para a direita simplesmente porque percebem a chegada descontrolada de imigrantes, refugiados e, sobretudo, muçulmanos como ameaças à sua identidade nacional e ao seu modo de vida. Não se trata de um medo irracional, racista e xenófobo do “outro” e do “diferente”, mas da constatação cotidiana, especialmente por parte dos mais pobres e das classes médias, de que esse processo afeta sua qualidade de vida, com a deterioração de seus bairros e o aumento da insegurança.

“Querer uma política de imigração mais estrita não é, em si, racismo”, reconhecem os autores, evocando outro cientista político que vem se debruçando sobre a questão, David Goodhart: “A esquerda tende a acreditar que a preferência de alguém por sua própria nação ou por seu próprio grupo étnico é uma forma de racismo. Os conservadores veem isso como senso comum e se ressentem de serem rotulados de racistas”.

Isso tudo vale para a Europa, naturalmente, onde a abertura a imigrantes e refugiados e o processo de islamização foram acentuados nos últimos anos. Mas esse diagnóstico pouco ou nada tem a ver com o caso brasileiro, um país marcado desde sempre pela miscigenação e que só muito recentemente vem tentando importar uma narrativa racialista raivosa de países com um contexto e uma História completamente diferentes. Nesse sentido, os autores forçam a barra ao citar, fora de contexto, uma declaração de Bolsonaro (“A escória do mundo está vindo para o Brasil”), sem esclarecer que ele se referia a potenciais terroristas, que não tinham qualquer dificuldade em entrar no país.

Estudiosos do Fascismo, Eatwell e Goodwin esclarecem, de forma honesta e óbvia, que é inadequado rotular como fascista a guinada para a direita que testemunhamos nos últimos anos. Da mesma maneira, é apenas uma estupidez desqualificar como racistas todos os europeus que se opõem à política de portas abertas, e estupidez ainda maior é associar – como se faz no Brasil, diga-se de passagem – essa onda ao neoliberalismo, já que em vários casos os líderes nacional-populistas defendem um Estado forte e limitações ao livre comércio, na defesa dos interesses econômicos da nação – e dos empregos de seus cidadãos.

Parece consistente como ferramenta de análise a lista de fatores que explicam essa marcha para a direita na Europa: a desconfiança em relação às elites e aos políticos tradicionais; o desalinhamento crescente dos eleitores com os partidos já estabelecidos, com os quais se sentem menos comprometidos; a percepção da destruição de valores, costumes e modos de vida, bem como de ameaças à estabilidade econômica; e a “privação relativa”, o sentimento de insegurança do cidadão médio diante da crença de que está “perdendo” em relação a outros grupos, em meio a um processo de erosão dos valores compartilhados que são o cimento da identidade de qualquer nação.

Tudo isso tem raízes em questões complexas e profundas, não apenas econômicas mas também demográficas e culturais. Existe, entre os cidadãos europeus comuns, a sensação de que os políticos de esquerda, com seu discurso pretensamente inclusivo, não atendem mais aos seus interesses nem ouvem mais as suas vozes. O europeu médio teme, com razão, que séculos de História estão em risco de desaparecimento – a recente onda de vandalização e derrubada de monumentos é uma confirmação eloquente desse temor.

Nesse contexto, quando o líder italiano Matteo Salvini propõe mandar de volta para seus países 500.000 refugiados, ele está respondendo aos temores bem reais e justificado do cidadão médio, preocupado com seu emprego e com a segurança do seu bairro e da sua família. Ele não está nem um pouco preocupado com a opinião dos intelectuais e acadêmicos protegidos em seus gabinetes, muito menos com a opinião dos estudantes progressistas protegidos na casa dos pais: está preocupado com a maioria do eleitorado.

É fácil desdenhar desse temor das classes médias, mas os riscos da islamização parecem muito reais para quem vive fora da bolha politicamente correta da vida acadêmica. Eatwell e Goodwin acertam quando afirmam que essas preocupações não podem ser simplesmente rotuladas de fascistas e jogadas na lata de lixo (ou podem, mas as consequências virão na forma de um crescimento ainda maior da direita). Mas, quando saem do seu “círculo de competência” – a análise das sociedades europeias – e tentam aplicar suas teses ao Brasil – país com um contexto e uma História completamente diferentes daqueles das nações europeias – falham miseravelmente.

“Nacional-populismo” tem o mérito de desmontar algumas mentiras e narrativas disseminadas pela esquerda sobre o crescimento da direita. Mas as referências dos autores ao Brasil e a Jair Bolsonaro podem ser entendidas como a parte mais frágil do livro. Eatwell e Goodwin parecem ignorar completamente o longo ciclo populista de esquerda – o lulopetismo – que antecedeu (e, até certo ponto, provocou) a eleição de Bolsonaro. Este é citado 15 vezes no livro, sempre de forma enviesada.

O modelo interpretativo do livro se adapta com muita dificuldade ao Brasil, um país que não enfrenta mudanças demográficas aceleradas radicais provocadas pela imigração – e também um país no qual a miscigenação desfez desde sempre as distinções rígidas entre as raças. Isso constitui uma vantagem competitiva que hoje estão tentando destruir, transformando o Brasil em uma nação bicolor: não é outro o sentido do discurso do ódio racialista, do revanchismo sectário e da narrativa da dívida história que hoje servem, como outras pautas identitárias, à agenda ideológica da esquerda (substituindo a luta de classes).

Aparentemente sem um mínimo de familiaridade com o que aconteceu no Brasil desde a eleição do populista Lula em 2002 – a cooptação das elites pela esquerda, o aparelhamento do Estado, a compra de votos dos pobres via programas assistencialistas, o estabelecimento de um gigantesco sistema de corrupção para financiar um projeto de perpetuação no poder e, não menos importante, a divisão deliberada e criminosa da sociedade entre “nós” e “eles”, cujos efeitos se fazem sentir até hoje – os autores se limitam a uma interpretação por analogia, a uma análise equivocada e superficial do caso brasileiro.

Eatwell e Goodwyn fazem algumas acusações irresponsáveis: afirmam, por exemplo, que “a vasta maioria das informações falsas no Whatsap [durante a campanha de 2018] favorecia Bolsonaro – o que, além de ser algo difícil de demonstrar, passa batido pelo fato de que, eleição após eleição, o grupo no poder entre 2003 e 2016 fez da disseminação de fake news e do assassinato de reputações um método e uma arte. Os autores também erram completamente o alvo quando escrevem que a eleição de Bolsonaro reflete o desejo por uma liderança autoritária ou mesmo por um regime militar – o que deve corresponder a uma fração irrisória dos eleitores: é como afirmar que todos os eleitores de Bolsonaro acreditam que a Terra é plana.

Fato: nenhuma análise intelectualmente honesta do nacional-populismo de Bolsonaro pode abrir mão do reconhecimento de que as condições para sua ascensão foram criadas durante o ciclo do populismo lulopetista, com a adoção sistemática das práticas já citadas – a divisão deliberada da sociedade brasileira, a vitimização das minorias, a cooptação e o controle da mídia, a desconfiança dos intelectuais, a deslegitimação da oposição, a exploração política da pobreza, a corrupção em escala nunca vista como sistema de perpetuação no poder a opção pelo assistencialismo e pelo crédito barato para cooptar os mais pobres – em vez de oferecer educação de qualidade, a única forma de um país escapar da armadilha da pobreza (ou seja, a opção deliberada por dar o peixe em troca do voto, em vez de ensinar a pescar).

“Nacional-populismo – A revolta contra a democracia liberal” de Roger Eatwell e Matthew Goodwin. Tradução de Alessandra Bonrruquer. Record, 350 pgs. R$ 74,90

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