Um livro fundamental foi recentemente traduzido no Brasil: “Os tribunais de Stalin”, do historiador Nicolas Werth. O autor reconstitui os três grandes julgamentos públicos promovidos pelo ditador comunista durante o sombrio período do Grande Terror (1936-1938), marcado por expurgos, prisões e execuções em massa. E analisa em profundidade os mecanismos do controle estatal e das práticas judiciais que converteram a União Soviética em um Estado de vigilância total.
Combinando rigor acadêmico e uma narrativa fluente, Werth investiga como o aparato judicial foi instrumentalizado para justificar execuções sumárias, deportações e o envio de milhões de pessoas a campos de trabalho forçado na Sibéria – os Gulags, usados tanto como punição para dissidentes quanto como método de controle social, espalhando o medo na população.
Incontáveis vidas foram destruídas. Stalin consolidou seu poder eliminando seus opositores, reais ou imaginários. Nesse processo, os julgamentos e expurgos tiveram uma dupla função, como instrumentos de repressão e como arma de propaganda. A caça brutal à oposição era apresentada como uma "necessidade revolucionária", justificada pelos ataques ao regime por parte de traidores e sabotadores que conspiravam para dar um golpe contra Stalin.
É mais ou menos como acontece hoje, naquelas democracias relativas onde a liberdade de expressão é desprezada, as redes sociais são censuradas, manifestantes são presos e condenados a penas absurdas e a imunidade parlamentar de deputados é jogada no lixo – todas medidas que poderiam ser apresentadas como uma “necessidade democrática”. Ainda bem que isso não acontece no Brasil.
Sob Stalin, os réus eram julgados em processos fabricados, muitas vezes baseados em confissões obtidas sob tortura. Essas confissões eram centrais nos julgamentos, por dar uma aparência de legitimidade às condenações, estabelecidas de antemão.
Antigos líderes bolcheviques como Kamenev e Zinoviev, aliados de Lenin e figuras destacadas na Revolução de 1917, foram acusados de conspiração, espionagem para potências estrangeiras e planejamento do assassinato contra Stalin e outros líderes. Foram torturados física e psicologicamente para confessar crimes que não cometeram. Após a confissão, foram fuzilados.
Bukharin, um dos teóricos mais respeitados do pensamento marxista, foi humilhado e destruído em público, mostrando que ninguém poderia se sentir seguro, o que produziu um clima de medo generalizado. Acusado de conspirar com potências estrangeiras e sabotar a economia, Bukharin também foi submetido a meses de tortura antes de confessar e ser executado.
Testemunhas falsas e provas fabricadas eram a regra. Após os julgamentos, não apenas os acusados, mas também suas famílias, amigos e associados eram alvos da repressão. Era comum que esposas e filhos dos réus fossem enviados para Gulags.
O clima de terror afetou a sociedade inteira, ao produzir uma atmosfera de desconfiança e paranoia generalizadas. Os julgamentos enviavam uma mensagem clara à população: ninguém estava seguro, qualquer um poderia ser acusado de traição. Pessoas comuns foram denunciadas por vizinhos, colegas e até familiares, às vezes por motivos banais.
A incerteza sobre quem poderia estar espionando criava um ambiente de paranoia generalizada, levando à progressiva desintegração de laços sociais: pessoas evitavam expressar opiniões ou confiar umas nas outras, temendo as consequências de uma palavra mal empregada. A longo prazo, a censura e o controle ideológico sufocaram a inovação artística, científica e cultural, provocando estagnação.
Milhões de pessoas foram recrutadas como informantes. Enviadas a autoridades de instituições repressivas como o NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos), uma denúncia poderia resultar na prisão ou mesmo na execução sumária de um desafeto. Residências, telefones e correspondências eram monitorados.
Os julgamentos eram realizados em público, com grande estardalhaço, para projetar a ideia de que Stalin e seu aparato judicial estavam protegendo a democracia, digo, a revolução. Era, talvez, uma tentativa de recivilizar a União Soviética, e para que esse esforço fosse bem-sucedido a centralização do poder e a vigilância absoluta dos cidadãos eram indispensáveis.
Outro elemento importante nesse processo era o controle da circulação de informações, com o objetivo de moldar a opinião pública e eliminar as fake news, digo, as opiniões e ideias contrárias ao regime. A importação de livros, jornais e filmes era rigidamente controlada, para evitar a propagação de ideias burguesas ou contrarrevolucionárias.
Além disso, todos os meios de comunicação eram controlados e manipulados pelo Estado, Fotografias e registros oficiais eram frequentemente alterados, para apagar qualquer referência a indivíduos que caíam em desgraça, como as vítimas dos expurgos promovidos por Stalin.
A Justiça soviética promovia a sistematização de uma engenharia social destinada a purificar a sociedade dos elementos que atrapalhassem a marcha rumo à felicidade comunista
“Os tribunais de Stalin” é dividido em três partes. Primeiro, o relato dos eventos históricos, com a descrição dos julgamentos e seus desdobramentos. Em seguida, a análise do aparato judicial, mostrando como a Justiça soviética foi subvertida para servir de sustentação ao regime. Por fim, a análise dos impactos políticos, sociais, psicológicos e culturais dos julgamentos.
A conclusão é que a Justiça soviética foi transformada em uma arma política, usada a serviço da perpetuação de Stalin no poder. Ostentando virtude, juízes encenavam discursos vigorosos contra os réus, tratando-os como traidores antes mesmo do final do julgamento e do anúncio das sentenças. O sistema judicial se tornou uma extensão do poder político. Os julgamentos eram menos um procedimento jurídico que uma peça de ficção criada para consolidar a narrativa oficial.
O sistema judicial soviético foi desenhado para proteger o regime, não para garantir justiça aos cidadãos. Ele, além de ser um mediador imparcial de disputas, era uma ferramenta de repressão. Em vez de proteger direitos, mascarava arbitrariedades sob uma aparência de legalidade.
Os acusados confessavam os crimes mais inacreditáveis, mas a mídia internacional se limitava a observar tudo à distância, com prudência – já que, na ausência de redes sociais livres, ela dependia dos informes oficiais do regime soviético.
O autor recorre a uma ampla gama de fontes, como documentos oficiais, memórias de sobreviventes e registros judiciais, para compor um panorama ambicioso e assustador. “Os tribunais de Stalin” desafia o leitor a refletir sobre os limites do poder e as consequências da desumanização em regimes autoritários.
Werth argumenta que os tribunais e o terror não foram aberrações, mas parte integrante do sistema de governança stalinista. A Justiça soviética promovia a sistematização de uma engenharia social destinada a purificar a sociedade dos elementos que atrapalhassem a marcha rumo à felicidade comunista. O resultado: mais de 1 milhão de pessoas foram deportadas; cerca de 750.000 foram executadas.
O autor compara os julgamentos de Moscou com práticas de outros regimes totalitários, como a Alemanha nazista e a China maoísta, identificando um padrão comum em todos eles: o uso do sistema judicial para eliminar a dissidência e intimidar a população. Seu livro é um alerta importante sobre os perigos de regimes autoritários centralizados – e sobre como a Justiça pode ser subvertida para legitimar a perseguição e outros crimes de Estado.
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