Mesmo em um nível básico, o xadrez exige um tipo de conhecimento específico que torna muito difícil explorar o jogo artisticamente, na forma de ficção. Na literatura, não conheço nenhuma tentativa que tenha dado certo, com a possível exceção da novela “A defesa”, de Vladimir Nabokov – embora também ali o xadrez sirva mais como pretexto para a exploração de questões psicológicas e afetivas dos protagonistas do que efetivamente como elemento estruturante da narrativa.
Também merecem citação “A torre ferida por um raio”, do espanhol Fernando Arrabal, e “Variante Gotemburgo”, do brasileiro Esdras do Nascimento (que era alías um forte enxadrista amador), mas os dois romances dificilmente parecerão interessantes para quem não joga xadrez, já que nos dois casos a trama tem relação direta com os movimentos de uma partida.
No cinema e na televisão, então, nem se fala. Existem, é claro, documentários muito bons sobre personagens específicos – como o americano Bobby Fischer, que acabou com o longo reinado soviético no xadrez ao se tornar campeão mundial em 1972, em plena Guerra Fria. Mas, na ficção, nunca se produziu nada digno de nota.
Por tudo isso, o burburinho em torno da minissérie “Gambito da Rainha”, da Netflix, me deixou um pouco desconfiado. Aliás, “Gambito da Dama” seria mais apropriado como tradução do título, já que se trata do nome de uma abertura (isto é, de uma série padronizada de movimentos no início da partida: no caso, um “gambito”, uma abertura na qual se sacrifica deliberadamente material (um peão) para obter vantagem de tempo (o desenvolvimento mais rápido das outras peças).
Assista abaixo ao trailer de “Gambito da Rainha”:
Com sete episódios longos, a série se passa nos anos 60, e a protagonista é a jovem enxadrista Beth Harmon (Anya Taylor-Joy). Criada em um orfanato, onde desenvolveu um vício em calmantes, a introvertida Beth aprende a jogar xadrez aos 8 anos com o rabugento zelador da instituição e, rapidamente, se torna uma fortíssima enxadrista. Adotada aos 13, ela vai morar em Kentucky, onde começa a disputar e vencer torneios. Aos 22, se prepara para enfrentar o maior desafio de sua carreira.
Para quem joga xadrez, o problema começa aí: a maneira como a série retrata a transição de neófita a campeã imbatível é bastante inverossímil. Mas, seguramente, a dificuldade maior para o espectador leigo será entender (e se identificar com) o encantamento quase hipnótico produzido pelo jogo na protagonista.
Merecem menção o esmero da fotografia e o cuidado demonstrado com a reconstituição do ambiente dos torneios da época, mas o que sustenta mesmo o interesse na história são as questões pessoais da protagonista: sua relação ambígua com a madrasta interesseira (uma dona de casa abandonada pelo marido, com um pé no alcoolismo), a descoberta da sexualidade e os desafios da socialização em um ambiente hostil (para quem, como Beth, não se enquadra nos padrões). Seu talento especial, ela descobre, também pode se tornar um fardo e fonte de angústia e sofrimento, com os quais ela precisará aprender a lidar. Ou seja, trata-se de uma série sobre amadurecimento, na qual o pano de fundo poderia ser o xadrez ou qualquer ouro jogo ou esporte.
Mas, também por esse esse prisma, “Gambito da Rainha” deixa a desejar. O roteiro não consegue escapar de alguns clichês, que tornam a narrativa esquemática e as situações de conflito previsíveis e familiares. Beth é a “diferentona” da escola, um tipo comum em pencas de filmes e séries com protagonistas femininas em busca de seu lugar no mundo.
A dificuldade maior para quem não joga xadrez será entender o encantamento quase hipnótico produzido pelo jogo na protagonista
Anya Taylor-Joy é uma boa atriz, mas ao mesmo tempo sua interpretação tem um pouco de dever de casa bem ensaiado e frio, mesmo nos momentos de maior abandono e privação da personagem, que pediriam uma atuação mais intensa. A qualidade modesta e bem comportada dos diálogos também não permite que a atriz desenvolva uma dicção particular para sua personagem. Como todo na série, Anya é ao mesm o tempo impecável e sem brilho. Já os personagenms secundários, com exceção da madrasta Alma Wheeler (intepretada pela ótima Marielle Heller) são em sua maioria meras “escadas” para a protagonista, sem qualquer profundidade psicológica.
Em suma, como mais uma série sobre superação, sobre a dificuldade de se livrar das amarras criadas na infância, “Gambito da Rainha” é perfeitamente assistível, mas ainda não foi dessa vez que conseguiram transformar o xadrez em matéria-prima para uma grande obra de ficção. (Curiosamente, com o futebol acontece a mesma coisa. Qual foi o grande romance sobre futebol que você já leu? Qual foi o grande filme ou série de ficção sobre futebol que você já viu? Pois é. Não deixa de ser um mistério.)
A boa notícia é que, desde a estreia de “Gambito da Rainha”, a pesquisa no Google por “Como jogar xadrez” atingiu o pico da década, que a venda de peças e tabuleiros disparou e que o número de jogadores no site chess.com (que recomendo muito) aumentou 500%. No fim das contas, ajudar a popularizar o xadrez é o maior mérito da série da Netflix.
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