No segundo semestre de 2018, ainda durante o Governo Temer, lancei o livro “Guerra de narrativas – A crise política e a luta pelo controle do imaginário”, uma análise dos últimos anos do PT no poder, a partir dos protestos de 2013, e do processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, entre outros temas. Já no primeiro capítulo, atribuí o êxito daquele processo de afastamento da presidente a uma rara conspiração de fatores, incluindo a ação conjunta de cinco atores: o mercado, as ruas, a classe política, o Judiciário e a mídia. Para se derrubar legitimamente um presidente, argumentei, é indispensável a ação convergente desses atores: a não-adesão de qualquer um deles torna um impeachment muito improvável.
Foi somente quando Dilma conseguiu a façanha de unir esses cinco atores contra ela que seu governo começou a cair: a economia colapsava, após dois anos seguidos de forte recessão, com inflação de dois dígitos e desemprego elevado; as ruas, que já tinham deixado de ser propriedade dos militantes petistas desde junho de 2013, reuniam protestos populares cada vez maiores; a mídia, após anos de condescendência com o vasto esquema de corrupção montado para a perpetuação de um projeto de poder, se rendia ao peso da pressão popular; no Judiciário, pressionado pelas sucessivas etapas da operação Lava-Jato, a situação de Dilma também só piorava; por fim, o Congresso, que nunca foi exatamente dilmista, fez a sua parte.
Mais do que pelos crimes de responsabilidade efetivamente cometidos, portanto, Dilma Rousseff – como, aliás, Fernando Collor – caiu porque as ruas, o mercado, a classe política, a mídia e o Judiciário se uniram contra ela. Já Michel Temer, mesmo nos piores momentos de seu mandato, só teve contra ele a mídia e alguns ministros do STF, além do então Procurador Geral da República. Estes perderam a aposta no queda de Temer porque nem as ruas, nem o mercado nem a classe política se mobilizaram para afastá-lo.
Um impeachment, como se sabe, é um mecanismo constitucional e democrático que exige dois requisitos: o jurídico e o político. Isso significa que um eventual crime de responsabilidade é causa necessária, mas não suficiente, para desencadeá-lo. Crimes de responsabilidade fornecem a condição jurídica, mas sem as condições políticas o processo não anda. E as condições políticas dependem da ação articulada dos cinco atores, que só muito raramente têm agendas coincidentes.
Por exemplo, quando explodiu o escândalo do Mensalão, parecia explícita a existência do requisito jurídico para o afastamento de Lula, mas faltavam as condições políticas: diante da popularidade do presidente, dos indicadores econômicos positivos, da boa vontade da mídia e do silêncio das ruas, não havia como fazer a engrenagem do impeachment se mover. Além disso, a oposição julgou mais inteligente deixar Lula “sangrar” até o fim do mandato – e deu no que deu. Ainda assim, com toda a sua popularidade, Lula foi alvo de nada menos que 34 pedidos de impeachment – 25 no primeiro mandato e nove no segundo.
Aliás, depois do afastamento de Collor em 1990, todos os presidentes que tomaram posse – até mesmo o pacato Itamar Franco – foram alvo de pedidos de impeachment. Foram quatro pedidos contra Itamar, 17 contra Fernando Henrique Cardoso, os 34 já citados contra Lula, 48 contra Dilma e 30 contra Michel Temer. Ao todo, 133; só um foi até o fim. Todos os outros foram arquivados.
Por tudo isso, o fato de já terem sido protocolados mais de 30 pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro não deve ser superestimado. Um exame do comportamento recente dos cinco atores citados acima sugere que não existem as condições necessárias para que um processo de impeachment prospere, pelo menos por enquanto.
- O comportamento do mercado
Ainda que se avizinhe um recessão forte e prolongada, no contexto da pandemia do coronavírus ninguém de boa-fé poderá atribuir a responsabilidade por essa crise ao presidente (caso bem diferente de Dilma, cuja política econômica errática e equivocada foi diretamente responsável por jogar o país no buraco). Aliás a Bolsa, que é o termômetro do humor do mercado, já recuperou boa parte das perdas provocadas pelo pânico provocado pelo coronavírus em março. É claro que tudo vai depender de até quando essa pandemia irá durar – e da capacidade (e velocidade) da recuperação econômica do país, quando ela passar.
- O comportamento das ruas
O isolamento social imposto pela pandemia desempenha seu papel ao esvaziar as ruas, mas não é só isso. Apesar dos panelaços dos inimigos de sempre, ainda não há nada que sequer se aproxime da mobilização popular que foi um fator fundamental para afastar Dilma do poder. É claro que a pandemia piora o humor dos brasileiros comuns, sem agenda ideológica, contra o governo; mas, por outro lado, quando ela passar e a economia começar a se recuperar, esse humor tende a melhorar.
- O comportamento do Congresso
Ainda que pelos motivos errados, a classe política é o ator que reage de forma mais racional e pragmática aos acontecimentos. A relação de morde-e-assopra entre o Executivo e o Legislativo reflete uma disputa por cargos e poder, na qual pedidos de impeachment funcionam como moeda de troca, em um momento no qual o isolamento social ameaça agravar o isolamento político do presidente. Não deixa de ser sugestivo que a primeira reação de Rodrigo Maia à tensão provocada pelo ex-ministro Sergio Moro tenha sido colocar panos quentes, com declarações do tipo: “A prioridade é o coronavírus”.
A aproximação em curso com o Centrão tende a proteger Bolsonaro de qualquer ação mais hostil do Legislativo, ainda que tenha um custo simbólico: o presidente estará se rendendo às pressões da velha política, tendo sido eleito para combatê-la. Mas sempre se poderá argumentar que no Brasil é impossível governar sem fazer concessões ao Congresso – ainda mais no contexto da atual pandemia. E é do Congresso que depende, em última instância, o andamento de qualquer processo de impeachment.
- O comportamento do Judiciário
Embora haja reações periódicas de ministros do STF a falas intempestivas e destemperadas do presidente, o Supremo tende a aguardar os acontecimentos e não agir sem ser legalmente provocado. Parece haver, em todo caso, uma divisão interna do colegiado, como demonstrou o desconforto causado em alguns ministros pela decisão monocrática de Alexandre de Moraes de impedir a posse de Alexandre Ramagem na Polícia Federal (decisão que incomodou Dias Toffoli e foi classificada como “algo nefasto” por Marco Aurélio Mello).
- O comportamento da mídia
Alguém já disse que, numa guerra, a primeira vítima é a verdade. Mas, na guerra de narrativas em curso já há vários anos no Brasil, a credibilidade da grande mídia também já foi miseravelmente abatida. Os grandes veículos de comunicação abriram mão até do esforço para manter a aparência de imparcialidade. A isso se somou um ambiente em que a verdade perdeu sua importância moral: independente do lado em que estamos, mentir a nosso favor e mentir contra nossos adversários passou a ser prática comum e aceitável. Fato é que a mídia parece hoje bem menos poderosa do que já foi. Mas, se a situação piorar e ela sentir cheiro de sangue, sua contribuição também será necessária, como ocorreu no impeachment de Dilma.
É claro que a qualquer momento fatos novos podem mudar drasticamente todo esse cenário. Outro fator a considerar é que, na hipótese remota de impedimento de Bolsonaro, assumiria o general Hamilton Mourão – o que pode desencorajar a movimentação de alguns atores, por diferentes motivos. Uma coisa é certa: o próximo presidente que assumir, seja quem for, quando for e de que partido for, também será alvo de vários pedidos de impeachment. No Brasil, isso já faz parte da rotina e do jogo político.
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