Imaginem a seguinte situação:
Na guerra de narrativas criada em torno da operação policial no Jacarezinho, que resultou em 28 mortes, um grupo de ativistas publica nas redes sociais um vídeo mostrando uma execução realizada por homens vestidos de preto, que matam a tiros uma pessoa deitada no chão. O grupo afirma que se trata de policiais cometendo um assassinato a sangue-frio, dentro de uma residência, durante a ação no Jacarezinho. É uma acusação grave.
Imediatamente, o Supremo Tribunal da Internet, sem apurar nem questionar a veracidade do vídeo, assume que se trata de uma prova irrefutável do comportamento criminoso dos policiais envolvidos na operação. As redes sociais entram em polvorosa e se mobilizam para realizar mais um julgamento sumário, sem qualquer direito a defesa ou contraditório, no qual a Polícia é evidentemente condenada.
Ato contínuo, milhares de militantes do “ódio do bem” compartilham o vídeo e a acusação, submetendo a instituição policial ao linchamento habitual, com as seguintes legendas: “Cenas fortes! Policiais invadem casa e executam homem no chão durante chacina no Jacarezinho”; “Execução filmada no Jacarezinho. Terrível”; “Foi assim no Rio de Janeiro, no Jacarezinho… Execução fria, sumária e assassina!”; “Sabemos quem está por trás... Nada como desviar a atenção da CPI da Covid-19!”
No dia seguinte, vejam só, descobre-se que o vídeo não tinha nada a ver com a operação no Jacarezinho. O que as imagens mostram é a ação de bandidos usando fardas falsas, em um crime cometido no sul do país, a mais de 1.000 quilômetros de distância do Rio de Janeiro, gravado sabe-se lá quando. Ou seja: quem divulgou o vídeo afirmando que se tratava dos policiais no Jacarezinho cometeu um erro grave, talvez um crime.
Mas ninguém se retrata. Nenhuma das pessoas que lincharam a Polícia nas redes sociais se manifesta. Normal. Para o Tribunal da Internet, fazer acusações mentirosas de forma irresponsável e manchar a imagem alheia com base em informações falsas é um ritual que já se tornou rotineiro e moralmente aceitável. Tempos sombrios.
Pois bem, a situação acima aconteceu. Mas com agravantes estarrecedores.
Quem afirmou que o vídeo - do qual foi extraída a imagem acima - era da operação no Jacarezinho não foi um grupo de ativistas qualquer, mas o Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
E quem acolheu e corroborou o vídeo demonstrando “violência policial” como verdadeiro não foi o Tribunal da Internet, mas o STF, o Supremo Tribunal Federal, a instância máxima da Justiça no país. Foi justamente por ter acolhido o vídeo que um ministro do Supremo enviou Ofícios à Procuradoria Geral da República e ao Ministério Público, pedindo providências com base em indícios de “execução arbitrária”.
(Sim a execução foi arbitrária. Só que foi cometida por bandidos no sul do país, e não por policiais no Rio de Janeiro. Mas este é só um detalhe irrelevante.)
Como no ritual do Tribunal da Internet, quando a mentira veio à tona ninguém pediu desculpas. O Núcleo de Assessoria Jurídica que enviou ao Supremo o vídeo falso sequer se sentiu constrangido. Em vez disso, limitou-se a solicitar a exclusão do vídeo “anexado de forma equivocada”. Só faltou colocar a culpa no estagiário. m
Sim. Envia-se um vídeo falso ao STF, que provoca uma ação de um ministro do Supremo que põe em suspeição a instituição da Polícia, e quando a falsidade do vídeo é divulgada quem enviou o vídeo se limita a pedir sua exclusão. Quem vai responder pelas consequências da associação mentirosa do vídeo aos policiais da operação? Ninguém. Vai ficar por isso mesmo.
Por sua vez, questionado pelo portal “O Antagonista”, o único até agora a divulgar o episódio, o gabinete do ministro do STF respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que “caberá ao MP e à PGR avaliarem e inclusive atestarem a veracidade do conteúdo”. Mas se o próprio Núcleo que enviou o vídeo já reconheceu seu erro e a falsidade das imagens, o STF ainda julga necessário que o MP e a PGR atestem a veracidade do vídeo falso?
Já a assessoria da UFRJ não respondeu aos contatos do portal.
É legítimo que se espere que uma operação que resultou em tantas mortes seja investigada. Evidentemente, se forem encontradas provas de ação criminosa de policiais, eles devem ser julgados e punidos – na esfera legal.
Mas, por óbvio, a mera convicção de que esses policiais agiram de forma criminosa não pode justificar a fabricação e divulgação, mal intencionada ou não, de provas contra a Polícia. Isso já seria absurdo se envolvesse apenas militantes anônimos no Facebook e o Tribunal da Internet. Quando acontece envolvendo o núcleo jurídico de uma universidade federal e o Supremo Tribunal Federal, torna-se assustador.