Durante a ditadura militar, boa parte da sociedade brasileira se sentia asfixiada pela censura, pela falta de liberdade de expressão e pela tentativa do sistema de impor um absoluto controle ideológico sobre a população.
A independência dos Poderes era uma farsa. No Congresso só se admitia oposição de mentirinha. Sem qualquer cerimônia, o governo hipertrofiado criava órgãos e empoderava agentes para vigiar e intimidar os cidadãos.
Os meios de comunicação que avançassem o sinal estavam sujeitos a sofrer sanções imediatas ou mesmo a fechar as portas, o que levava à auto-censura. Mas muitos jornalistas preferiram aderir.
Em nome da garantia da ordem – há sempre uma justificativa moral nas ditaduras – o devido processo legal era atropelado rotineiramente, em canetadas sumárias ou processos que corriam em segredo.
Protestos nas ruas, nem pensar: manifestações populares pacíficas eram desqualificadas como subversivas e reprimidas com rigor. Devia ser muito duro viver em um país onde as pessoas tinham medo de protestar, ou mesmo de dar sua opinião ou fazer uma crítica.
(Ainda bem que no Brasil de hoje não é mais assim: todos são livres para dizer o que pensam, os direitos individuais estão assegurados por um Judiciário isento, e a imprensa livre cumpre seu papel com coragem e honestidade, certo?)
Naquela atmosfera opressiva, a música popular funcionou como uma válvula de escape para a sociedade. Em defesa da democracia e como sugestão para reflexão, vale a pena rememorar e comentar o que diziam as letras de algumas canções que se tornaram verdadeiros hinos da resistência à ditadura – hinos que se devem ser aplicados a todas as ditaduras, a qualquer ditadura.
1.
Apesar de você (Chico Buarque, 1978)
“Hoje você é quem manda/ Falou, tá falado/ Não tem discussão, não/ A minha gente hoje anda/ Falando de lado e olhando pro chão (...)/ Como vai proibir/ Quando o galo insistir em cantar? (...)/ Apesar de você/ Amanhã há de ser outro dia”
A letra reflete a percepção do cidadão comum da época, coagido a obedecer, calado e sem discussão, as ordens das autoridades representantes da ditadura. Falou, tá falado. O povo, com medo, andava de lado e olhava pro chão, ainda que com um grito contido.
Mas o povo, ao mesmo tempo, sonhava com a liberdade e tinha a esperança e a convicção de que aquele período era passageiro. Amanhã (“antes do que você pensa”) há de ser outro dia, apesar do ditador de plantão. Ainda bem que hoje o brasileiro não precisa mais ter medo de falar, e que não há mais ditadores de plantão.
2.
Comportamento geral (Gonzaguinha, 1973)
“Você deve aprender a baixar a cabeça/ E dizer sempre: "Muito obrigado"/ São palavras que ainda te deixam dizer/ Por ser homem bem disciplinado/ Deve pois só fazer pelo bem da Nação/ Tudo aquilo que for ordenado/ Pra ganhar um Fuscão no juízo final/ E diploma de bem comportado”
Gonzaguinha faz nesta canção uma crítica à narrativa do chamado milagre econômico da década de 1970 – e, principalmente, ao esforço, feito pela ditadura e pela grande mídia que a apoiava, de convencer as pessoas de que as coisas no Brasil iam cada vez melhor ("Este é um país que vai pra frente, uôu uôu uôu uôu uôu").
Apesar da carestia e da perseguição e prisão de opositores, o brasileiro comum devia evitar reclamar, estampar um sorriso no rosto e fingir que estava feliz. Criticar políticas públicas do regime militar, por exemplo, era um comportamento de risco. Ainda bem que hoje qualquer um pode criticar o que quiser.
3.
É proibido proibir (Caetano Veloso, 1968)
“E eu digo não/ E eu digo não ao não/ Eu digo:/ É proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir”
Censura prévia dos espetáculos culturais (como filmes e peças teatrais), controle da imprensa, ilegalidade de reuniões públicas não-autorizadas e suspensão sumária de direitos daqueles cidadãos que fossem identificados como inimigos do regime foram algumas das práticas da ditadura. Parecia que tudo era proibido.
Foi nesse contexto que Caetano Veloso compôs um verdadeiro hino à desobediência e à rebeldia, “É proibido proibir”. Ainda bem que hoje os brasileiros não são mais proibidos de se manifestar e abominam toda forma de censura e perseguição.
4.
Acorda amor (Chico Buarque, 1974)
“Acorda, amor/ Eu tive um pesadelo agora/ Sonhei que tinha gente lá fora/ Batendo no portão,/ que aflição/ Era a dura,/ numa muito escura viatura/ Minha nossa santa criatura/ Chame, chame, chame lá/ Chame, chame o ladrão, chame o ladrão”
"Chame o ladrão" é o verso mais conhecido desta canção e reflete a trágica ironia das ditaduras: aqueles que deveriam proteger os cidadãos (a polícia, no caso) acabam sendo usados para persegui-los.
O compositor vai além: sugere que as autoridades da época tinham trocado de lugar com os ladrões. Ora, a quem podia recorrer o cidadão comum se a própria Justiça o atacava, ignorando as leis que deveria defender?
Já a mensagem “Acorda, amor” se dirigia, metaforicamente, não a um par romântico, mas ao povo brasileiro, que, alienado, não percebia o que acontecia debaixo de seu nariz – e, quando percebeu, já era tarde. Ainda bem que essas coisas só acontecem nas ditaduras.
5.
Mosca na sopa (Raul Seixas, 1973)
“Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa/ Eu sou a mosca/ Que pintou pra lhe abusar/ Eu sou a mosca/ Que perturba o seu sono/ Eu sou a mosca/ No seu quarto a zumbizar”
A falta de sentido da canção “Mosca na Sopa” é apenas aparente: Raul Seixas identifica a chatice da mosca com o dever da resistência individual à ditadura: mesmo pequeno e sem poder, o cidadão comum pode incomodar e perturbar, como um inseto, o sono daqueles que roubam sua liberdade e debocham dos seus valores.
Por extensão, a mosca representava toda a sociedade, insatisfeita e consciente, apesar de temporariamente calada. Curiosamente a música passou pela censura, mas em seu parecer o censor a classificou como “estúpida” e de “mau gosto”.
6.
Eu quero é botar meu bloco na rua (Sérgio Sampaio, 1972)
“Há quem diga que eu dormi de touca/ Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga/ Que eu caí do galho e que não vi saída/ Que eu morri de medo quando o pau quebrou/ Há quem diga que eu não sei de nada/ Que eu não sou de nada e não peço desculpas/ (...) Eu quero é botar meu bloco na rua/ Brincar, botar pra gemer/ Eu quero é botar meu bloco na rua/ Gingar, pra dar e vender”
Mais uma canção que fala da angústia e da impotência do cidadão comum diante da atmosdera de falta de liberdade e do arbítrio – sentimentos comuns nas ditaduras.
No início da década de 70, tropas percorriam as ruas para dispersar aglomerações e manifestações populares: o povo nas ruas, pacificamente, era percebido como uma ameaça pela ditadura - e sempre foi festejado (ou, ao menos, respeitado) por quem defende a democracia.
Naquele contexto, o compositor usou uma metáfora carnavalesca para manifestar sua revolta com a atmosfera asfixiante da repressão. Felizmente esse tempo já passou: no Brasil de hoje, o direito à livre-manifestação está garantido.
7.
Cálice (Chico Buarque, 1978)
“Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta/ Mesmo calada a boca, resta o peito/ Silêncio na cidade não se escuta/ (...) Pai, afasta de mim esse cálice/ Pai, afasta de mim esse cálice/ Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue”
Para terminar, mais uma de Chico Buarque. Fazendo uso da paronomásia “cálice/cale-se”, a canção compara a situação do povo silenciado e oprimido ao momento da súplica de Jesus Cristo, na cruz, para que o Deus/Pai afastasse o cálice daquele destino terrível.
Traz, por outro lado, uma mensagem de resiliência e esperança, ao lembrar que “talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado”.
Por sua vez, o imperativo “cálice/cale-se” do refrão é a tradução mais perfeita da ação da ditadura, de todas as ditaduras, sobre a liberdade de expressão, que é sempre a sua primeira vítima.
(E, como sabem as autoridades, liberdade de expressão é sempre a liberdade de quem pensa de forma diferente da nossa - aliás, quem disse isso foi Rosa Luxemburgo, uma heroína da esquerda. Ou seja: não há democracia possível sem liberdade de expressão.)
Mais uma vez: ainda bem que no Brasil o cala-boca já morreu, não existe mais censura, e jornalistas e cidadãos comuns são livres para criticar o governo;
Ainda bem que conteúdos não são proibidos nem suprimidos da internet, filmes não são censurados, e contas nas redes sociais não são bloqueadas por crime de opinião;
Ainda bem que jornalistas não precisam medir a todo momento as palavras, passaportes não são apreendidos, e inquéritos não são abertos com base em prints de conversas de WhatsApp;
Ainda bem que a Justiça e a grande mídia são imparciais e não têm lado, a Constituição é respeitada, e não há interferência indevida entre os três Poderes;
Ainda bem, por fim, que adversários políticos não são inimigos a perseguir, esfolar e abater, mas brasileiros que precisam conviver, todos iguais entre si e perante a lei, ainda que pensem de formas diferentes.
Porque é assim que funciona na democracia. Ou não?
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