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Em 10 de maio de 1933 ocorreu na Praça da Ópera, em Berlim, a primeira grande queima de livros na Alemanha nazista. Promovido por uma associação de estudantes, com apoio do ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, o ato se multiplicou por mais de 30 cidades, nos meses seguintes.
A justificativa era proteger a Alemanha de influências corrosivas de autores subversivos e degenerados, que ofendiam a dignidade da população e minavam as fundações da nova ordem. A lista de livros queimados incluía obras de escritores judeus, por óbvio, mas também de intelectuais socialistas, comunistas, liberais e até pacifistas.
Somente obras alinhadas com a ideologia nazista eram aceitáveis. Livros e autores indesejáveis precisavam ser banidos, porque o regime não tolerava vozes divergentes, percebidas como ameaças. O nazismo dependia do controle absoluto sobre a cultura para ter êxito na construção de um pensamento hegemônico.
Nesse contexto, o ato de queimar livros, como forma de erradicar ideias potencialmente nocivas, fazia parte de uma política mais ampla de censura, que alcançava a manifestação de qualquer opinião ou pensamento que não servisse aos interesses do projeto nazista.
A fogueira de livros foi um ato profundamente simbólico e revelador. Foi o passo inicial para a desumanização e a exclusão de judeus e outros grupos marginalizados da sociedade alemã, bem como para a perseguição brutal aos opositores do regime. O controle simbólico da cultura antecipou, portanto, o extermínio físico dos adversários.
Para justificar as fogueiras de livros, o governo usou a narrativa da proteção aos jovens e outras parcelas vulneráveis da população alemã, que poderiam ser “desviadas” por conceitos perigosos para o desenvolvimento de seu caráter. No evento inaugural, Goebbels fez um discurso inflamado, glorificando a ideia de uma Alemanha recivilizada, digo, purificada pelo Nacional-Socialismo.
Já a partir daquele momento, antes mesmo de Hitler consolidar seu poder, ficava claro que qualquer manifestação crítica ao governo poderia ser interpretada como um ataque ao Estado de Direito e resultar em perseguição ou mesmo prisão. O impacto cultural foi devastador. Nos anos seguintes, muitos escritores foram exilados ou calados, e um vasto corpo da literatura foi banido do território alemão.
O episódio é fartamente conhecimento e documentado, mas um aspecto importante costuma ser omitido nas análises e comentários sobre o tema: o fato de que, aos olhos do regime nazista e no contexto legal e ideológico da época, os livros destruídos eram efetivamente execráveis e degenerados. Quem queimava livros estava do lado da lei. Fora da lei estavam aqueles que os escreviam.
Queimar livros era, assim, a coisa certa a fazer. Não havia que se falar em liberdade de expressão, porque muito mais importante era o combate a ideias nocivas para o povo alemão. A destruição de obras com conteúdo que desagradava ao regime não era, portanto, um ato arbitrário de censura, ao contrário: era uma autodefesa, uma resposta legítima à necessidade de defender a nação e o Estado de Direito daqueles que conspiravam para destruí-los.
O povo alemão não apenas entendeu e aplaudiu, como participou ativamente da censura do bem, tacando fogo em livros de Freud e Marx, Kafka e Thomas Mann, Stefan Zweig e Erich Maria Remarque, e até mesmo Jack London e H.G.Wells, entre muitos outros autores degenerados e moralmente corruptos.
O truque do regime foi apresentar à população as aberrantes fogueiras de livros como imperativos morais benéficos aos seus interesses. E a maior parte da população caiu no truque, legitimando um governo arbitrário e repressivo que acabaria sendo responsável pelo extermínio de milhões de judeus e outras minorias.
Ora, se a lei e a população apoiavam a queima de livros, era evidente que não se tratava de censura, mas de um gesto patriótico, que reforçava o compromisso com os valores do Terceiro Reich em construção. Goebbels reforçou essa ideia ao afirmar que o povo alemão estava “limpando” a nação e mostrando sua lealdade ao regime.
Eles não estavam destruindo livros por maldade, mas para proteger o Estado de Direito e a população mais vulnerável. Era quase um gesto de amor. Deu no que deu
Queimar livros foi um prelúdio da tragédia. Desde então as fogueiras de livros na Alemanha Nazista têm servido como lição e alerta contra o risco da tentação autoritária que pode contaminar governos onipotentes.
Governantes e juízes sem limites podem até ter a convicção de estar fazendo o que é certo. Mas essa convicção não pode bastar, porque é muito fácil elaborar justificativas bonitas e nobres para os atos mais bárbaros, como destruir livros: ameaça à ordem pública, proteção das minorias, etc. Frequentemente, a retórica da virtude é usada para mascarar a intolerância à pluralidade e o desejo de controle.
Foi para evitar que episódios como as fogueiras de livros se repetissem que as democracias modernas desenvolveram sistemas de freios e contrapesos que coibissem abusos. Mas, em diferentes momentos da História, esses sistemas foram corrompidos, enfraquecidos ou simplesmente ignorados. E episódios de destruição ou queima de livros votaram a acontecer, ainda que raramente.
Na História republicana do Brasil, que eu saiba, em apenas três ocasiões a Justiça federal ordenou a destruição de livros (não estou falando apenas de censura, mas da efetiva destruição de livros por ordem da Justiça). As duas primeiras ocorreram em ditaduras. Nos dois casos, alegou-se que o conteúdo poderia ameaçar a ordem pública e valores fundamentais da sociedade.
A primeira ocasião foi o período do Estado Novo (1937-1945), quando Getúlio Vargas implementou uma rígida política de censura. Livros considerados subversivos foram proibidos ou destruídos, com o objetivo de impedir o acesso da população a ideias que confrontassem a ideologia autoritária do governo.
Por ordem da Justiça, muitos livros foram destruídos pela polícia política da época, o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda. Por exemplo: o “Manifesto Comunista”, de Marx e Engels, e “Mein Kampf”, de Adolf Hitler, bem como romances de Jorge Amado, Graça Aranha e Cyro dos Anjos.
Curiosamente, embora não tenha sido queimado, até mesmo o elogioso livro “Brasil, o país do futuro”, de Stefan Zweig (de novo ele), chegou a ser censurado, por trazer comentários que incomodaram o governo Vargas. Isso porque Zweig fez observações sobre a desigualdade social, a pobreza e os problemas de infraestrutura que contrariavam a narrativa oficial que o Estado Novo queria impor, de um Brasil próspero, coeso e socialmente justo, com todos os indicadores econômicos e sociais excelentes.
Observação importante: no Estado Novo, a liberdade de expressão era oficialmente reconhecida como um direito, mas foi sistematicamente relativizada com a justificativa da proteção da ordem pública e da defesa da moral. O princípio da liberdade de expressão é citado no Artigo 122 da Constituição de 1937, mas com uma pegadinha, que, na prática, autorizava a imposição de restrições cada vez mais severas à sua aplicação:
"É livre a manifestação de pensamento, pela palavra, pelos escritos e pela imprensa, sem dependência de censura, salvo o respeito devido à moral, à ordem pública e à segurança nacional."
Ou seja, o Estado Novo apresentava uma fachada de liberdade, mas, na prática, controlava a narrativa política e suprimia qualquer discurso que ameaçasse a hegemonia do regime. A liberdade de expressão, portanto, existia oficialmente, mas era relativizada e condicionada a limites impostos pela busca do progresso e da justiça social – conceitos amplamente manipulados para justificar a censura e a perseguição de adversários.
Soa familiar?
[Continua]
Conteúdo editado por: Aline Menezes