Estudantes alemães queimam publicamente escritos e livros “não alemães” na avenida central “Unter den Linden”, em Berlim, dia 10 de maio de 1933.| Foto: Arquivo Federal Alemão/Wikimedia Commons
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Em 10 de maio de 1933 ocorreu na Praça da Ópera, em Berlim, a primeira grande queima de livros na Alemanha nazista. Promovido por uma associação de estudantes, com apoio do ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, o ato se multiplicou por mais de 30 cidades, nos meses seguintes.

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A justificativa era proteger a Alemanha de influências corrosivas de autores subversivos e degenerados, que ofendiam a dignidade da população e minavam as fundações da nova ordem. A lista de livros queimados incluía obras de escritores judeus, por óbvio, mas também de intelectuais socialistas, comunistas, liberais e até pacifistas.

Somente obras alinhadas com a ideologia nazista eram aceitáveis. Livros e autores indesejáveis precisavam ser banidos, porque o regime não tolerava vozes divergentes, percebidas como ameaças. O nazismo dependia do controle absoluto sobre a cultura para ter êxito na construção de um pensamento hegemônico.

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Nesse contexto, o ato de queimar livros, como forma de erradicar ideias potencialmente nocivas, fazia parte de uma política mais ampla de censura, que alcançava a manifestação de qualquer opinião ou pensamento que não servisse aos interesses do projeto nazista.

A fogueira de livros foi um ato profundamente simbólico e revelador. Foi o passo inicial para a desumanização e a exclusão de judeus e outros grupos marginalizados da sociedade alemã, bem como para a perseguição brutal aos opositores do regime. O controle simbólico da cultura antecipou, portanto, o extermínio físico dos adversários.

Para justificar as fogueiras de livros, o governo usou a narrativa da proteção aos jovens e outras parcelas vulneráveis da população alemã, que poderiam ser “desviadas” por conceitos perigosos para o desenvolvimento de seu caráter. No evento inaugural, Goebbels fez um discurso inflamado, glorificando a ideia de uma Alemanha recivilizada, digo, purificada pelo Nacional-Socialismo.

Já a partir daquele momento, antes mesmo de Hitler consolidar seu poder, ficava claro que qualquer manifestação crítica ao governo poderia ser interpretada como um ataque ao Estado de Direito e resultar em perseguição ou mesmo prisão. O impacto cultural foi devastador. Nos anos seguintes, muitos escritores foram exilados ou calados, e um vasto corpo da literatura foi banido do território alemão.

O episódio é fartamente conhecimento e documentado, mas um aspecto importante costuma ser omitido nas análises e comentários sobre o tema: o fato de que, aos olhos do regime nazista e no contexto legal e ideológico da época, os livros destruídos eram efetivamente execráveis e degenerados. Quem queimava livros estava do lado da lei. Fora da lei estavam aqueles que os escreviam.

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Queimar livros era, assim, a coisa certa a fazer. Não havia que se falar em liberdade de expressão, porque muito mais importante era o combate a ideias nocivas para o povo alemão. A destruição de obras com conteúdo que desagradava ao regime não era, portanto, um ato arbitrário de censura, ao contrário: era uma autodefesa, uma resposta legítima à necessidade de defender a nação e o Estado de Direito daqueles que conspiravam para destruí-los.

O povo alemão não apenas entendeu e aplaudiu, como participou ativamente da censura do bem, tacando fogo em livros de Freud e Marx, Kafka e Thomas Mann, Stefan Zweig e Erich Maria Remarque, e até mesmo Jack London e H.G.Wells, entre muitos outros autores degenerados e moralmente corruptos.

O truque do regime foi apresentar à população as aberrantes fogueiras de livros como imperativos morais benéficos aos seus interesses. E a maior parte da população caiu no truque, legitimando um governo arbitrário e repressivo que acabaria sendo responsável pelo extermínio de milhões de judeus e outras minorias.

Ora, se a lei e a população apoiavam a queima de livros, era evidente que não se tratava de censura, mas de um gesto patriótico, que reforçava o compromisso com os valores do Terceiro Reich em construção. Goebbels reforçou essa ideia ao afirmar que o povo alemão estava “limpando” a nação e mostrando sua lealdade ao regime.

Eles não estavam destruindo livros por maldade, mas para proteger o Estado de Direito e a população mais vulnerável. Era quase um gesto de amor. Deu no que deu

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Queimar livros foi um prelúdio da tragédia. Desde então as fogueiras de livros na Alemanha Nazista têm servido como lição e alerta contra o risco da tentação autoritária que pode contaminar governos onipotentes.

Governantes e juízes sem limites podem até ter a convicção de estar fazendo o que é certo. Mas essa convicção não pode bastar, porque é muito fácil elaborar justificativas bonitas e nobres para os atos mais bárbaros, como destruir livros: ameaça à ordem pública, proteção das minorias, etc. Frequentemente, a retórica da virtude é usada para mascarar a intolerância à pluralidade e o desejo de controle.

Foi para evitar que episódios como as fogueiras de livros se repetissem que as democracias modernas desenvolveram sistemas de freios e contrapesos que coibissem abusos. Mas, em diferentes momentos da História, esses sistemas foram corrompidos, enfraquecidos ou simplesmente ignorados. E episódios de destruição ou queima de livros votaram a acontecer, ainda que raramente.

Na História republicana do Brasil, que eu saiba, em apenas três ocasiões a Justiça federal ordenou a destruição de livros (não estou falando apenas de censura, mas da efetiva destruição de livros por ordem da Justiça). As duas primeiras ocorreram em ditaduras. Nos dois casos, alegou-se que o conteúdo poderia ameaçar a ordem pública e  valores fundamentais da sociedade.

A primeira ocasião foi o período do Estado Novo (1937-1945), quando Getúlio Vargas implementou uma rígida política de censura. Livros considerados subversivos foram proibidos ou destruídos, com o objetivo de impedir o acesso da população a ideias que confrontassem a ideologia autoritária do governo.

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Por ordem da Justiça, muitos livros foram destruídos pela polícia política da época, o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda. Por exemplo: o “Manifesto Comunista”, de Marx e Engels, e “Mein Kampf”, de Adolf Hitler, bem como romances de Jorge Amado, Graça Aranha e Cyro dos Anjos.

Curiosamente, embora não tenha sido queimado, até mesmo o elogioso livro “Brasil, o país do futuro”, de Stefan Zweig (de novo ele), chegou a ser censurado, por trazer comentários que incomodaram o governo Vargas. Isso porque Zweig fez observações sobre a desigualdade social, a pobreza e os problemas de infraestrutura que contrariavam a narrativa oficial que o Estado Novo queria impor, de um Brasil próspero, coeso e socialmente justo, com todos os indicadores econômicos e sociais excelentes.

Observação importante: no Estado Novo, a liberdade de expressão era oficialmente reconhecida como um direito, mas foi sistematicamente relativizada com a justificativa da proteção da ordem pública e da defesa da moral. O princípio da liberdade de expressão é citado no Artigo 122 da Constituição de 1937, mas com uma pegadinha, que, na prática, autorizava a imposição de restrições cada vez mais severas à sua aplicação:

"É livre a manifestação de pensamento, pela palavra, pelos escritos e pela imprensa, sem dependência de censura, salvo o respeito devido à moral, à ordem pública e à segurança nacional."

Ou seja, o Estado Novo apresentava uma fachada de liberdade, mas, na prática, controlava a narrativa política e suprimia qualquer discurso que ameaçasse a hegemonia do regime. A liberdade de expressão, portanto, existia oficialmente, mas era relativizada e condicionada a limites impostos pela busca do progresso e da justiça social – conceitos amplamente manipulados para justificar a censura e a perseguição de adversários.

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