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A Lei de Talião – o famoso “dente por dente, olho por olho” – vem sendo citada em análises sobre o comportamento recente (e não tão recente) do Poder Judiciário, em função do excesso aparente de algumas medidas, como neste ótimo artigo de Marcel van Hattem.
Nos últimos dias, aliás, até mesmo a grande mídia reagiu, condenando a equiparação da hostilização de um ministro do STF no aeroporto de Roma a um crime contra o Estado Democrático de Direito – tese aliás também defendida pelo ministro da Justiça.
Hoje mesmo o Estadão soltou um editorial, “A distorção que enfraquece a democracia”, afirmando que esse entendimento só faria sentido em um sistema absolutista, como o do Rei Luís XIV na França, a quem se atribui a célebre frase “L’état c’est moi” (“O Estado sou eu”).
Segundo o jornal, a lei estabelece que “a proteção específica do regime democrático não tem nenhuma relação com questões de honra ou mesmo de integridade física das autoridades”.
Por óbvio, agressões precisam ser condenadas. Mas a punição aos agressores, caso o crime seja comprovado, deve ser proporcional ao crime e fixada na justa medida da lei, nem mais nem menos.
A mensagem que se passa, porém, não é essa: neste e em outros casos, a motivação parece ser não a aplicação da lei, mas, de punições desproporcionalmente duras e severas, para dar um exemplo politicamente pedagógico e intimidador a uma parcela gigantesca da sociedade – o “eles” do “nós contra eles”.
Para piorar as coisas, o próprio presidente comparou os (ainda supostos) agressores de Roma a animais selvagens, que precisam ser extirpados da sociedade: “Essa gente que renasceu no neofascismo colocado em prática no Brasil tem que ser extirpada, e nós vamos ser muito duros com essa gente, para eles aprenderem a voltar a serem civilizados.”
Nada de bom pode vir dessa retórica. O uso pedagógico da Justiça como ferramenta de retaliação ou, pior ainda, de constrangimento e intimidação de, arredondando, metade da população brasileira não combina com a democracia que se afirma defender.
Fato é que, na percepção de uma parcela crescente da sociedade, algumas autoridades do Judiciário parecem comprometidas não com o imperativo da estrita e neutra aplicação da lei, mas com a defesa de determinada agenda em detrimento de outra e com a assunção explícita de um papel político.
Não parece saudável nem inteligente alimentar essa percepção – a não ser que o discurso da defesa da democracia seja apenas retórico e instrumental. Esperemos que não seja.
A reciprocidade entre o delito e a pena, que fundamenta a Lei de Talião, está no cerne da própria ideia de justiça materializada nos primeiros códigos legais, formulados há mais de 4 mil anos
Isso posto, a evocação da Lei de Talião como referência para o Brasil de hoje me parece equivocada. Porque a intenção e o espírito da Lei de Talião não eram dar a quem julga um poder ilimitado, o poder de ser duro com uns e suave com outros, conforme a conveniência.
Ao contrário: era estabelecer um parâmetro, uma régua e um limite para a Justiça, ajustando a condenação à exata proporção do delito, independente de quem o praticou.
A rigorosa reciprocidade entre o delito e a pena, que fundamenta a Lei de Talião, está no cerne da própria ideia de justiça materializada nos primeiros códigos legais, formulados há mais de 4 mil anos. O conjunto de regras jurídicas criado pelo rei de Ur, Ur-Nammu, data de 2100 a.C. e já estabelece: “Se um homem comete assassinato, esse homem deve ser morto”.
Ainda que a pena de morte pareça hoje inaceitável para muita gente, o importante no código de Ur-Nammu é estabelecer um limite para a punição, desautorizando qualquer excesso por parte de quem julga.
Já há 4 mil anos se entendeu que a punição não pode ser maior que o delito: por rigorosa que fosse, uma sentença não podia extrapolar o crime e ser estendida, por exemplo, ao confisco de propriedades pelo Estado, ou à perseguição de parentes e amigos do criminoso, nem se basear em interpretações políticas.
Esse princípio aparece de forma mais explícita no Código de Hamurábi, imperador da Babilônia entre 1792 e 1750 a.C., que estabelece como objetivo “pôr em prática a regra da retidão na Terra, de modo que o forte não prejudique o fraco” – ou seja, coibir o abuso de poder, de maneira a encerrar a prática de rixas e vinganças que ameaçava a própria sobrevivência da sociedade.
Confirme a Wikipedia: “Os sistemas da lei de talião serviram a um propósito crítico no desenvolvimento dos sistemas sociais – o estabelecimento de um instituto cujo propósito era decretar a retaliação e garantir que essa fosse a única punição. Esta doutrina era o Estado em uma de suas formas mais antigas”.
É justamente uma das 282 leis do Código de Hamurábi que determina: “Se um homem tirar o olho de outro homem, seu olho deve ser tirado”.
A mesma ideia aparece nos livros do Levítico (“Quem ferir mortalmente um homem será condenado à morte. Quem ferir mortalmente um animal devolverá um semelhante: vida por vida”) e do Deuteronômio (“Teus olhos não o pouparão: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”.), que integram a Torá hebraica e o Antigo Testamento. Aparece, também, no Direito romano, quando é batizada como Lex Talionis, Lei de Talião.
Bem mais tarde, o Alcorão, livro sagrado do Islã, também incorpora o conceito, ainda que admitindo a possibilidade do perdão: “E nós lhes prescrevemos que se pague vida por vida, olho por olho, nariz por nariz, orelha por orelha, dente por dente, e, também, para as feridas, o talião. Mas quem perdoar, seu perdão será sua expiação.”
O sentido da Lei de Talião, portanto, nunca foi o incentivo à vingança exemplar e pedagógica, mas, justamente, ajustar a retaliação/punição ao delito cometido, limitando a compensação ao valor da perda. Algo bem diferente do que se testemunha hoje no Brasil – que, neste quesito, parece estar mais atrasado que as antigas civilizações.