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Estava pensando em escrever sobre o caso do Telegram e do PL 2630, mas sei lá, né? Não parece muito prudente, melhor deixar esse assunto pra lá. Além do mais, o próprio Telegram já se ajoelhou no milho, apagou a mensagem e enviou outra, em tom de auto-humilhação, depois que os guardiões da democracia deixaram claro como deve ser o debate sobre o tema, isto é, restrito a quem for a favor. Ainda bem que existem esses guardiões, para proteger a democracia de tantos ataques.
Mas quem for contra o PL não tem direito de se manifestar? Quem for contra o PL tem o direito de ficar calado. Onde já se viu ser contra um projeto de lei tão magnânimo, desinteressado e irretocável, movido exclusivamente pelo interesse público e pelo bem comum?
Em uma democracia não tem disso não. E quem teimar em discordar será democraticamente calado na marra. Isso sem falar nas democráticas multas de milhões de reais por hora, nas contas democraticamente bloqueadas nas redes sociais etc.
Ou seja, parece que revogaram o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquele que dizia que "todos têm o direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de ter opiniões sem interferência e de buscar, receber e transmitir informações e ideias por qualquer meio e independentemente de fronteiras”.
Quando criticar o governo vira sinônimo de atacar a democracia, opinião pode virar crime
Ora, é que na época em que a Declaração foi escrita não existiam redes sociais, esse Artigo 19 ficou superado, é preciso adequá-la aos novos tempos; Se andaram dizendo por aí que até a Bíblia precisa ser reescrita, qual seria o problema em suprimir um artigozinho de nada da Declaração dos Direitos Humanos?
Chegamos a uma nova e fulgurante etapa da democracia, uma etapa na qual, por exemplo, se alguém perguntar, com base em tais e quais argumentos, se um projeto de lei representa um risco de censura, será imediatamente rotulado como golpista, desqualificado e censurado, por melhores que sejam os seus argumentos.
Mas por quê? Porque esses argumentos representam um ataque à democracia e já foram refutados por especialistas, você não viu? Ah bom. Que beleza, né? Se o PL 2630 nem foi aprovado e já é assim, imagina depois que virar lei: aí sim a democracia será plena no Brasil. Plena e sumária.
O chato é que este não foi um caso isolado. Para qualquer articulista minimamente independente, basta acompanhar o noticiário para ter uma ideia por hora sobre um potencial artigo. Mas... quando ele começa a escrever, vêm aqueles pensamentos incômodos: “Será que isso pode? Tem certeza? Olha o que aconteceu com aquele jornalista, com aquele escritor, com aquela atriz, com aquele humorista, até com aquele deputado...” Por via das dúvidas melhor não, né?
Por exemplo, eu também queria escrever sobre o (autocensurado), sobre a (autocensurado) e sobre os (autocensurado). Mas olho para os lados e vejo que pode não ser uma boa ideia. Melhor comentar o campeonato mundial de xadrez, os play-offs da NBA ou alguma série da Netflix.
A verdade é que não dá mais para ter certeza sobre o que estamos autorizados a dizer. Em uma ditadura os limites seriam mais claros. Mas, na nova democracia, os limites da liberdade de expressão - que já foi percebida como uma cláusula pétrea da democracia, um direito inalienável defendido inclusive pela esquerda - estão cada vez mais vagos e difíceis de entender.
Quando discordar do governo vira sinônimo de atacar a democracia, opinião pode virar crime. E os militantes do ativismo jornalístico, que antigamente gritariam “Censura nunca mais!” e “É proibido proibir!”, hoje comemoram a perseguição ou o cancelamento de qualquer voz dissonante. Porque é assim que as coisas funcionam: na democracia de um lado só, os jornalistas também só podem ter um lado. Tempos muito estranhos.
Então, na dúvida, prezado leitor, quando te perguntarem alguma coisa relacionada ao PL 2630, ou aliás a qualquer outro assunto politicamente sensível, o melhor a fazer é responder como o Zé Carioca respondeu ao Pato Donald no meme que ilustra este artigo: “Não posso reclamar”. Porque talvez você não possa mesmo.
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Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima