“Sem os 10% mais ricos, Brasil seria um país igualitário”, diz autor de novo livro sobre desigualdade.
Antes mesmo de saber do que se tratava, a manchete me chamou a atenção, porque reflete, de forma até um pouco ingênua, a maneira enviesada que prevalece no Brasil de se enxergar – e de se lidar com – a desigualdade de renda.
Bom, em primeiro lugar, a manchete diz algo óbvio, mas que se aplica a rigorosamente qualquer pirâmide de renda de qualquer país do planeta, por se tratar de uma questão matemática e estatística.
Em qualquer conjunto com valores variados, se você excluir os valores mais altos, o resultado será um conjunto mais igualitário, isto é, um conjunto na qual a diferença entre o teto e o piso será menor.
Para chegar à conclusão destacada na manchete, portanto, não é necessária nenhuma pesquisa, não é preciso escrever nenhum livro, basta saber fazer conta.
Vale para o Brasil, como vale para os Estados Unidos, para os países europeus e até para a China e os países africanos: se eliminarmos da pirâmide da distribuição de renda os 10% mais ricos, o resultado será uma sociedade mais igualitária, mas... também será uma sociedade com uma renda média muito menor.
Perceba, leitor, que o mesmo raciocínio se aplicaria ao outro extremo da pirâmide: se eliminássemos da conta os 10% mais pobres, o Brasil também seria um país mais igualitário – só que com uma renda média bem maior. Por que então focar o combate à desigualdade no alto da pirâmide, e não na base?
Aqui está o viés do qual o Brasil não consegue se livrar: o alvo e o foco do combate à desigualdade no nosso país são sempre a riqueza – não a pobreza, que é sempre perpetuada e aparentemente tida como inevitável.
Por isso jamais veremos uma manchete assim: "O Brasil seria um país igualitário se os 10% mais pobres tivessem condições de prosperar". Porque a existência dos 10% mais ricos incomoda mais do que a existência dos 10% mais pobres.
Se o caminho escolhido para a redução da desigualdade for achatar a pirâmide pela parte de cima, e não pela parte de baixo, a sociedade que resultará do processo será seguramente mais igualitária, mas também mais pobre.
Talvez os 10% mais pobres fiquem ainda mais pobres do que antes em termos absolutos, mas, viva!, o país será mais igualitário. O que isso demonstra é que a desigualdade de renda, por si só, não diz rigorosamente nada sobre o êxito ou o fracasso de um país.
Estou apenas dizendo o óbvio: a Venezuela é hoje um país mais igualitário que o Brasil, seguramente. Mas de onde e para onde as pessoas estão fugindo, na fronteira entre os dois países?
Cuba é um país mais igualitário que os Estados Unidos, sem dúvida. Mas de onde muitas pessoas tentam desesperadamente sair, correndo até risco de vida em balsas improvisadas?
De maneira similar, quando existia comunismo na Europa, os países do Leste europeu eram mais igualitários que os da Europa ocidental, ninguém pode negar. Mas (e isso já virou até meme) quando o Muro de Berlim caiu, para que lado as pessoas correram?
Tenho certeza de que o livro em questão – “Os ricos e os pobres: O Brasil da desigualdade”, recém-lançado pela Companhia das Letras – tem qualidades e não se limita à tese acaciana destacada no título da entrevista do autor, o pesquisador Marcelo Medeiros, ora lecionando em Nova York. Mesmo assim, a julgar pelo conteúdo da entrevista, o filtro escolhido para se analisar a desigualdade do Brasil é revelador.
A desigualdade de renda em si não diz rigorosamente nada sobre o êxito ou o fracasso de um país: um país pode ser miserável e igualitário, outro pode ser próspero e desigual
Sempre achei que o foco de qualquer governo preocupado com a justiça social deveria ser o combate à miséria e à pobreza, não à desigualdade. Façamos uma comparação entre dois países hipotéticos, Prosperistão e Igualistão.
Em Prosperistão, o primeiro país hipotético, a desigualdade é alta, mas os 10% mais pobres conseguem morar e se alimentar bem; têm acesso a trabalho, dignidade e a serviços básicos de qualidade, em educação, segurança, saúde e transporte; existem oportunidades para todos os cidadãos crescerem e realizarem seu potencial, sem ficar pendurados para o resto da vida em uma mesada do Estado.
Em Prosperistão, a desigualdade não será um problema, ao contrário: pode ser até condição para a inexistência da miséria.
Já o segundo país hipotético, Igualistão, é altamente igualitário, isto é, apresenta uma diferença mínima entre o piso e o teto da renda, mas... Tem um piso de renda insuficiente para uma família viver com dignidade, não oferece acesso a educação e saúde, e os índices de criminalidade e corrupção são altíssimos.
Qual dos dois países hipotéticos é mais justo socialmente? Ou, formulando a pergunta de outra maneira: em qual dos dois países os 10% mais pobres prefeririam viver?
Não é só isso: em condições normais, os 10% mais ricos são fundamentais para o funcionamento da economia, porque geram emprego e renda. E, salvo em países socialistas, onde a igualdade é imposta na marra, a riqueza é causa e consequência do empreendedorismo, não da atuação do governo.
Não são os governos que geram riqueza: o máximo que um governo pode fazer é ajudar ou atrapalhar na geração da riqueza – via tributação, regulação de mercados e outras políticas. Mas não há registro na História de um país que tenha prosperado criminalizando os ricos e condenando os pobres à dependência perpétua de ajuda estatal.
Esse viés recorrente na nossa maneira de lidar com a questão da justiça social tem outro aspecto preocupante: incutir a culpa na cabeça dos mais ricos, como se prosperar fosse pecado; e incutir, na cabeça dos mais pobres, o ressentimento, que está sempre a um passo do desejo de vingança: “Se eu sou pobre, é porque ele é rico, então eu tenho o direito de tomar a parte que me cabe”.
Ora, como sempre haverá alguém mais rico, e sempre haverá 10% de mais ricos no país, por mais que ele empobreça, esse ressentimento só se resolverá quanto todos tiverem rigorosamente a mesma renda - e ela não será alta.
A situação fica mais preocupante quando se constata que hoje, em alguns estados do Nordeste, para fazer parte do 10% mais ricos basta ter uma renda mensal de R$ 2.300; em Minas Gerais, R$ 3.200; no Paraná, R$ 3.400; no Rio de Janeiro, R$ 4.200; em São Paulo, R$ 4.600. Se você, leitor, tem uma renda superior a estas, tome cuidado: você faz parte dos 10% da população que são responsáveis pela desigualdade - e fariam bem em deixar de existir, para o Brasil se tornar um país melhor.