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Sobrevivente dos Gulags escreve relato de partir o coração
| Foto: Reprodução Instagram

“Eu conto a minha própria história porque acredito que apenas dessa maneira poderei cumprir a obrigação moral que um destino generoso me impôs, quando me ajudou a escapar do terror soviético – o dever de falar por aqueles cujas vozes não podem ser ouvidas. Em silêncio, eles são enviados aos campos de concentração na condição de prisioneiros; em silêncio, eles são torturados e mortos por balas soviéticas”.

Assim Vladimir V.Tchernavin apresenta seu livro “Nos campos de concentração soviéticos – Relatos de um prisioneiro”, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Avis Rara.

Publicado originalmente em 1935, trata-se do primeiro livro de memórias escrito por um sobrevivente dos Gulags, os campos de concentração para onde eram enviados os dissidentes do regime comunista. Lá eles conheciam uma rotina inenarrável de trabalhos forçados e torturas físicas e psicológicas, à qual poucos resistiam.

Tchernavin, um engenheiro e cientista especializado em peixes, sem qualquer ativismo politico, foi um dos raros prisioneiros que conseguiram fugir desses campos, verdadeiras sucursais do inferno. Muitos de seus colegas não tiveram a mesma sorte: foram sumariamente executados com uma bala na nuca.

Calcula-se que mais de 20 milhões de pessoas tenham passado pelos Gulags até sua extinção definitiva, na década de 1980. Originalmente destinados aos “inimigos do povo” – burgueses, sacerdotes, antigos proprietários rurais, monarquistas que apoiavam o czarismo, bem como judeus, chechenos e outras minorias étnicas – com o tempo os Gulags passaram a abrigar potencialmente qualquer um que ousasse fazer a menor crítica ao regime de Stálin.

Ou, pior ainda, para aqueles que dessem o azar de ocupar cargos que os transformassem em possíveis bodes expiatórios para o reiterado fracasso do planejamento central da economia soviética.

Foi o caso de Tchernavin. Como gerente de uma empesa estatal responsável pela pesca em uma região remota da Rússia, ele recebeu do Kremlin a ordem irrealizável de multiplicar por 15 a produção de pescado em um prazo curtíssimo.

A ordem veio para compensar a crise de abastecimento de carne e produtos agrícolas causada pelo colapso da coletivização forçada das fazendas – a queda da produção já estava provocando a fome em largas parcelas da população.

Como a missão era humanamente impossível, Tchernavin e seus colegas foram acusados de sabotagem e presos. Sua vida foi revirada de uma hora para outra. A narrativa da chegada de oficiais da GPU (a polícia secreta soviética) para revistar sua casa e prendê-lo no meio da madrugada é tão absurda que parece ficção.

O relato em primeira pessoa é importante em vários aspectos. Primeiro, como testemunho do esmagamento do indivíduo nos regimes comunistas - aqueles que foram efetivamente implantados, não aqueles que só existem na cabeça de adolescentes idealistas ou maconheiros: Tchernavin é arbitrariamente perseguido e preso, é afastado da família, passa fome.

Nesse aspecto mais pessoal, as suas memórias da passagem por dois campos de concentração são de partir o coração. Mas o autor também faz uma análise objetiva e lúcida da irracionalidade do comunismo soviético.

Com a autoridade de quem viveu isso na prática, Tchernavin demonstra por A + B que o planejamento central da economia leva necessariamente ao caos e a miséria. O problema é que, em um regime de força, não há espaço para críticas, somente para o medo e a dissolução de tudo aquilo que nos torna humanos.

Como ressalta Gustavo Mauultasch no prefácio do livro, “a utopia socialista não representou apenas um fracasso de ordem econômica, mas também de ordem moral, um fracasso do espírito, destruindo os laços básicos de humanidade e solidariedade que lastreiam qualquer sociedade minimamente saudável”.

Paradoxalmente, o trabalho forçado dos milhões de prisioneiros dos Gulags estava inserido no sistema econômico proposto por Stálin para dinamizar a economia soviética. Cada prisioneiro era obrigado a cumprir uma jornada diária de pelo menos 12 horas, para receber uma ração básica. Como cumprir as metas era humanamente impossível, a maioria dos presos só recebia metade da ração; com o tempo, o detento se enfraquecia e, frequentemente, morria de inanição.

Durante o período que passou preso, o autor do livro foi submetido a interrogatórios sem conta e sofreu diversas formas de tortura. Diferentemente de muitos colegas, contudo, resistiu a assinar qualquer confissão forjada por seus algozes – o que representaria a morte certa.

Após diversas tentativas frustradas, Tchernavin conseguiu finalmente escapar para a Finlândia. Em 1934 ele se mudou para a Inglaterra, onde retomou sua carreira como cientista, trabalhando no Natural History Museum. Sua mulher, Tatiana, também escreveu um livro de memórias, “Escape from Russia”, que fornece mais detalhes sobre a fuga.

Tchernavin saiu do Gulag, mas o Gulag não saiu de dentro dele: o cientista acabou cometendo suicídio, em 1949, em Londres.

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