Assustadores os ensaios reunidos no livro Totalitarismo suave (Descobrir, 2023), de Rod Dreher.
Jornalista americano conservador que hoje vive em exílio voluntário na Hungria, Dreher foi durante 13 anos editor da revista The American Conservative, além de colaborador do New York Post e da National Review. É também autor dos livros Não viva uma mentira – Um manual para dissidentes cristãos, recém-lançado no Brasil, e A opção beneditina – Uma estratégia para cristãos num mundo pós-cristão.
Pelos títulos, já fica clara a enfática defesa do Cristianismo, que o autor julga necessária nos tempos sombrios em que vivemos hoje. Mas não se trata de livros religiosos: Dreher faz análises políticas e sociológicas bem fundamentadas, chamando a atenção para fenômenos que são habitualmente – ou deliberadamente – ignorados pela academia e pela mídia mainstream. Porque uma e outra, na verdade, fazem parte do problema que o autor expõe, investiga e denuncia.
Dreher faz por exemplo, uma articulação bastante original e perturbadora entre o modelo de sistema de crédito social chinês, o projeto de transição para uma moeda digital controlada pelo governo americano e a cultura do cancelamento, usada para desencorajar e suprimir dissidências.
De fato, para quem tem olhos para enxergar, parece óbvio que estão em curso mudanças sociais, culturais e tecnológicas que aproximam cada vez mais as sociedades ocidentais de uma forma peculiar de totalitarismo, que dispensa a força bruta e substitui a violência física por métodos de persuasão e intimidação mais sutis.
Esses métodos incluem mecanismos de coerção psicológica e econômica, não somente por parte do Estado mas também de entidades privadas (que são hoje mais poderosas do que muitos Estados, em alguns casos).
“O que tanto o totalitarismo bruto como o totalitarismo suave têm em comum é que em ambos todos os aspectos da vida são politizados”, afirma o autor. “Ambos buscam não apenas limitar liberdades individuais básicas, mas implantar toda uma cosmovisão na sociedade por meios coercitivos (brutos ou suaves), remodelando a linguagem e a consciência dos indivíduos, substituindo os seus valores tradicionais por novos valores”.
Bom, qualquer pessoa com um mínimo de honestidade intelectual percebe que já estamos vivendo algo assim, também no Brasil. A naturalização das restrições às liberdades individuais, começando pela liberdade de expressão, faz parte de um projeto de remodelagem dos próprios fundamentos da vida em sociedade.
Os novos totalitários impõem aos demais a sua interpretação do mundo e ditam até mesmo a linguagem que os cidadãos são autorizados e adotar. Impõem também suas pautas, exigindo de todos a adesão ao identitarismo woke, sob ameaça de perder dos meios de subsistência.
Também isso já está acontecendo no Brasil, onde jornalistas, artistas, humoristas e até deputados eleitos são perseguidos e proibidos de exercer seus ofícios – e têm suas contas bancárias bloqueadas e passaportes cancelados (isso quando não são presos), com base em crimes de opinião.
A premissa é que “certas ideias são intoleráveis, e aqueles que nelas creem devem perder os seus meios de subsistência”. No totalitarismo suave pode não haver gulags, torturas nem interrogatórios, porque “eles simplesmente te cancelarão e você não trabalhará novamente. Eles vão ensinar os seus filhos a te odiar e a se odiarem”.
Se isso ainda é uma democracia, trata-se de uma democracia bem diferente da tradicional. Nesta nova democracia, alerta o autor, quem insistir em defender valores associados à fé cristã pagará um preço alto em termos de acesso social, sucesso profissional e prosperidade econômica. Como nem é justo esperar que todos estejam dispostos a pagar esse preço, a tendência é haver cada vez menos cristãos no mundo, especialmente entre os jovens.
No totalitarismo suave não há necessidade de um Estado policial formal, já que o governo poderá confiscar todas as suas economias apertando um botão, se você for considerado um inimigo da democracia
Merece atenção particular a análise que Dreher faz da troca completa do dinheiro impresso pelo dinheiro digital. Sempre segundo o autor, em que pesem todas as vantagens práticas de uma moeda abstrata, em um futuro breve isso permitirá um total controle da vida econômica e financeira dos indivíduos por parte do Estado.
Vale a pena transcrever o que escreve Dreher, sobre a relação entre a moeda digital do governo e o controle dos cidadãos:
“O governo entende perfeitamente que, se ele tiver o poder de controlar todas as transações financeiras neste país, pode exigir que todos os que desejam comprar ou vender se conformem – ou sejam expulsos da economia. É assim que vamos obter uma versão americana do sistema de crédito social da China. Se o governo dos Estados Unidos decidir que você é uma ‘ameaça à democracia’ por causa de suas opiniões políticas, suas crenças religiosas ou qualquer outra coisa, basta apertar um botão e você será uma não-pessoa, incapaz de comprar ou vender.”
E, sobre a relação entre a moeda digital e a cultura do cancelamento associada à agenda identitária e à agenda ESG:
“As elites já absorveram a visão progressista de que a justiça requer discriminação com base na raça, gênero e outros fatores não escolhidos. (...) Além disso, você não poderá usar sua conta para comprar bens ou serviços que não sejam ‘suficientemente verdes’, (...) ou de fornecedores que ‘violem os direitos humanos’ segundo a definição do governo. (...) [O governo] não hesitaria em usar esse imenso poder para punir dissidentes – tudo em nome da ‘defesa dos direitos humanos’. (...)
“Não há dúvidas de que esse poder será abusado – e aqueles que usarem dirão a si mesmos que estão fazendo isso para o bem: ‘Estamos impedindo que os homofóbicos e transfóbicos comprem ou vendam. Estamos impedindo os racistas de comprar ou vender. Estamos impedindo aqueles que destruiriam a nossa democracia de comprar ou vender. (...)
“Imagine ir ao supermercado comprar leite e ser informado de que você não pode, porque o governo desativou o seu cartão. Quando você pergunta ao governo por que, eles dizem que foi registrado que você foi a uma livraria no ano passado e comprou alguns livros que agora são considerados subversivos ou antidemocráticos. (...) O algoritmo julga que, porque você comprou esses livros, você não é confiável.”
Nesse estado de coisas, não há necessidade de um Estado policial formal, já que o governo poderá confiscar todas as suas economias apertando um botão, se você for considerado um inimigo da democracia, ou de alguma minoria, ou da preservação da Amazônia.
“Isso não é paranoia”, conclui Dreher. “É a verdade. E já temos uma versão disso funcionando na China, com a moeda digital do Banco Central chinês”. É ou não é assustador?
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