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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Um pensador de esquerda que precisa ser lido

(Foto: Divulgação)

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O pensador marxista francês Louis Althusser (1918-1990) costuma ser mais lembrado hoje por um episódio trágico – ele estrangulou sua mulher durante um surto psicótico, em 1980 – que por sua original contribuição à teoria marxista. Mas, na década de 80 do século passado, sua leitura era praticamente obrigatória nos cursos de graduação em Ciências Humanas das universidades brasileiras.

Um livrinho seu intitulado “Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado”, particularmente, era figurinha fácil na bibliografia recomendada pelos professores. Revisitado hoje, esse pequeno ensaio revela impressionante atualidade.

Althusser começa chamando a atenção para o fato de que o fim último de todo e qualquer sistema de governo (bem como de todo e qualquer modo de produção, isto é, de toda e qualquer forma de organização das relações econômicas) é garantir a reprodução de suas condições de existência.

Ele não estava se referindo somente às condições materiais. Porque muito mais importante, para Althusser, é a introjeção, no imaginário coletivo da sociedade, de uma determinada mentalidade, de uma certa maneira de perceber o mundo, em suma, de uma ideologia.

Althusser aprimorou o conceito marxista de ideologia de duas maneiras:

Em primeiro lugar, ele refinou a definição clássica da ideologia como representação imaginária das relações dos indivíduos com as suas condições reais de existência: segundo Althusser, as concepções de mundo e o próprio entendimento do indivíduo sobre seu papel na sociedade são determinados, mais que pela situação concreta em que ele vive, pelo contexto cultural e por condicionantes religiosos, morais, jurídicos e políticos que o atravessam.

Ou seja, para Althusser o que uma ideologia representa não é o sistema das relações reais que governa a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária desses indivíduos com as relações reais – como as relações de dominação, mas não somente essas – que determinam a sua existência.

Mas Althusser foi além, ao enfatizar as manifestações concretas da ideologia, a materialização dos interesses de um determinado grupo, que pretende conquistar o (ou se manter no) poder. Nesse sentido, a ideologia, para o pensador francês, não seria apenas, um conjunto de ideias ou valores, mas também um conjunto de práticas e ações.

Para Althusser, o que importa na ideologia é forma como ela se efetiva em práticas sociais inscritas em instituições concretas, reguladas por rituais diversos. Isso porque a reprodução das relações materiais de produção não acontece sem a reprodução das relações simbólicas – da mesma maneira que a reprodução das relações materiais de produção não acontece sem a garantia objetiva da reposição da força de trabalho, por meio do salário e da garantia das mínimas condições necessárias para a subsistência do trabalhador.

O processo contínuo de persuasão operado por meio dos aparelhos ideológicos de Estado (como a escola) é muito mais eficaz que a coerção exercida pelos aparelhos de Estado propriamente ditos (como a polícia)

A economia faz girar o mundo, mas é a ideologia que torna possíveis a reprodução, geração após geração, do conjunto de valores e ideias que sustentam a organização da sociedade.

Sendo marxista, Althusser estava interessado em investigar por que, nas sociedades capitalistas, as classes exploradas se submetem, voluntariamente, a uma condição social subalterna. Em outras palavras, por que essas classes assimilam como naturais valores e práticas que a oprimem, e isso sem qualquer tipo de coerção?

Desafiando o postulado de que são as condições econômicas concretas – a infraestrutura, no jargão marxista – que determinam as relações simbólicas, sociais e culturais entre as pessoas (a superestrutura), ele afirma que aquilo que se passa no nível material é um efeito das condições subjetivas e simbólicas que estruturam as relações sociais.

Ou seja, ele inverte a relação de causa e efeito: as relações de circulação do capital, os meios de produção e consumo, a realização da mais-valia etc passam a ser entendidas como consequência (e não causa) de um determinado conjunto de representações que prevalece na cabeça das pessoas em uma determinada sociedade, em um determinado momento: são decorrência de uma ideologia, que determina o imaginário coletivo de um grupo social.

Isso porque, segundo Althusser, o processo contínuo de persuasão operado por meio dos aparelhos ideológicos de Estado (como a escola) – é muito mais eficaz que a coerção exercida pelos aparelhos de Estado propriamente ditos (como a polícia).

Ora, embora Althusser estivesse falando do ponto de vista de um marxista sobre a sociedade capitalista, parece evidente que ele estava preconizando a apropriação desse mecanismo pela esquerda, isto é: transformar a sociedade por dentro, não na base do conflito, mas na lenta e laboriosa ocupação das instituições e dos chamados aparelhos ideológicos de Estado: a Igreja, o sistema escolar (fundamental e  superior, público e privado), a família, o sistema jurídico, o sistema político, a vida cultural etc etc etc.

Althusser elaborou, por exemplo, uma reflexão fundamental sobre a escola como aparelho ideológico de Estado que inculca e reproduz os valores que servem à reprodução do sistema capitalista - mas com o único objetivo de inverter os sinais, isto é, de chamar a atenção para a necessidade de ocupação do sistema escolar pelo campo da esquerda, para que seu projeto de poder pudesse ter êxito.

No Brasil, o campo da esquerda entendeu com muita perspicácia que era imperativo perseguir não apenas a criação das condições objetivas que permitiriam a implementação de um novo projeto de sociedade, mas perseguir também – e principalmente – a criação de novas relações subjetivas e simbólicas entre governantes e governados, entre indivíduos e instituições, entre cidadãos e seus pares.

Foi notável e extremamente eficiente, por exemplo, o processo de ocupação ideológica das salas de aula pela esquerda, ao longo de décadas a fio. Se tanto já se criticou a proposta de uma “escola sem partido”, é porque a “escola com partido” foi uma ferramenta fundamental para ascensão do lulopetismo e para a própria chegada da esquerda ao poder.

Continuo do próximo artigo.

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