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A total abolição da vontade e da responsabilidade individuais são um elemento recorrente nos depoimentos reunidos no documentário “One child nation”, sobre a política de filho único implementada na China no final da década de 70. Uma das mulheres entrevistadas relata ter feito mais de 50.000 esterilizações ou abortos forçados – alguns deles com oito meses de gestação: “Matei bebês. Muitos eu tirei vivos do corpo da mãe e matei. Mas eu não tinha escolha. Era a política do governo. Não tomávamos decisões, só cumpríamos ordens”. Sobre as esterilizações, foram mais de 20 por dia, ao longo de 20 anos: “Nas aldeias, as mulheres que resistiam eram amarradas como porcos e arrastadas para fazer o procedimento. Podia até ser cruel, mas lei é lei, o que eu podia fazer?”

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Quem se negava a cooperar com a política de planejamento familiar compulsório também sofria outras formas de punição: os agentes do governo eram orientados a confiscar seus bens e demolir suas casas. Tudo para o bem da população e um futuro de prosperidade. Invariavelmente, todas as pessoas que participaram (e foram cúmplices) desse processo hoje se justificam dizendo que não tinham escolha, porque nenhuma insubordinação era tolerada pelo Estado, que na China se com funde com o Partido Comunista.

“Tínhamos que obedecer às ordens. Meus sentimentos pessoais não poderiam se sobrepor ao interesse nacional”, alega um homem que abandonou a filha recém-nascida em um mercado, com a esperança de que alguém a adotasse. “Voltei no dia seguinte e ela continuava lá, coberta por picadas de pernilongo. Dois dias depois estava morta”. O que mais impressiona é que ele fala sem culpa, como se não fosse responsável pelo seu ato monstruoso. É o que acontece quando se substitui a consciência individual pela submissão à consciência coletiva do Estado.

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Assista abaixo ao trailer do documentário “One child nation”

Dirigido pela cineasta sino-americana Nanfu Wang e disponível na plataforma Amazon Prime, “One child nation” é um documentário angustiante e devastador. Mostra os efeitos do Estado onipresente e onipotente na vida de pessoas comuns, mas não somente isso; o filme deixa claro que as piores atrocidades podem ser justificadas por um discurso de justiça social e interesse público.

A narrativa tem início com Wang visitando sua família na China, após ela própria se tornar mãe. O que começa com uma narrativa em primeira pessoa, com uma troca sorridente de lembranças da diretora com seus parentes sobre a sua infância, logo se transforma no panorama sombrio de um projeto monstruoso, com uma série de relatos assustadores sobre crianças abandonadas para morrer e mulheres esterilizadas à força.

É um verdadeiro desfile de horrores. Um dos entrevistados é um artista plástico que encontrou dezenas de fetos e bebês mortos em um lixão e decidiu criar obras que denunciassem o absurdo desse experimento brutal e cruel que até hoje tem desdobramentos na sociedade chinesa.

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A justificativa para impedir os casais de terem mais de um filho era deter o crescimento populacional quem, supostamente, levaria o país à fome e à miséria. Partindo dessa premissa e acreditando ser possível a modelagem do futuro pela força, o Estado chinês atacou em duas frentes: propaganda e coerção. Os chineses foram massacrados por campanhas publicitárias mostrando como suas vidas seriam maravilhosas se tivessem somente um filho. Um comercial da TV chinesa da época mostra uma criança, de dedo em riste para o espectador, recitando o seguinte texto: “Se você tiver um segundo filho estará violando a lei. Você será encarcerado. Pense bem. Depois não diga que eu não avisei!” A lavagem cerebral era maciça, mas, por garantia, quem não se deixasse convencer estava sujeito a obedecer na marra, além de sofrer punições severas e se tornar um pária social.

A lei que instituiu a política do filho do filho único só foi revogada em 2015 (desde então cada casal é autorizado a ter dois filhos). Foi uma verdadeira guerra do governo chinês contra seu próprio povo. E não foi a primeira: a Revolução Cultural e o “Grande Salto para Frente” também tiveram um custo inestimável em sofrimento e vidas humanas.

As vítimas da política do filho único implementada por quase quatro décadas também se contam aos milhões – incluindo casais que tiveram suas vidas destruídas e, principalmente, as crianças que foram abandonadas para morrer, assassinadas ou simplesmente impedidas de nascer.

Um desastre dessas proporções só seria possível em um país no qual a sociedade é dominada pela doutrinação sistemática e pela ameaça constante de emprego da força bruta do Estado contra o indivíduo. Uma sociedade na qual o pensamento único e coletivista tolhe qualquer possibilidade de exercício da liberdade individual. Que ainda existam, em países nos quais vigora a democracia, pessoas que defendem esse modelo é um sinal de que vivemos em constante perigo.