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Fidel Castro e Hugo Chávez em 1994: unidos em um projeto revolucionário latino-americano
Fidel Castro e Hugo Chávez em 1994: unidos em um projeto revolucionário latino-americano| Foto: Reprodução

Para se entender a gênese do Foro de São Paulo e do avanço das esquerdas na América Latina, é preciso voltar um pouco no tempo. No final da década de 1980, o súbito aumento da produção de petróleo pelos países árabes fez o preço da commodity atingir seu piso histórico, o que provocou uma severa crise social e econômica na Venezuela. Como aconteceu em outros países do então chamado “Terceiro Mundo”, o governo do presidente Carlos Andrés Perez recorreu ao Fundo Monetário Internacional – FMI e se viu forçado a implementar um programa de austeridade e corte de gastos que gerou grande descontentamento popular.

Esse descontentamento explodiu em fevereiro de 1989, com manifestações que ficaram conhecidas como “Caracazo” – episódio que historiadores associam à gênese do fenômeno Hugo Chávez, até então um obscuro e desconhecido tenente-coronel do Exército venezuelano. Demonizado e rotulado de “neoliberal”, o governo Perez passou a ser fustigado pelo “Movimiento Bolivariano Revolucionário” fundado por Chávez, até que, em fevereiro de 1992, o MBR resolveu tomar o poder na marra e tentou dar um golpe para derrubar Perez. Apesar do fracasso da iniciativa, que só obteve o apoio de 10% das Forças Armadas, Chávez foi catapultado, ainda na prisão, à condição de herói da resistência a um governo percebido como corrupto e hostil aos mais pobres.

Esse episódio é revelador de duas coisas. Primeiro, da “moral total flex” da esquerda: sem qualquer apreço às regras da democracia, Chávez tentou dar um golpe militar que causou dezenas de mortes – e virou herói. Ou seja, golpe militar de esquerda pode: o problema não está no golpe em si, mas em ser de direita ou de esquerda. Mas o episódio é revelador, também, de uma das chaves do êxito posterior da esquerda em vários países da América Latina: a estratégia de declarar-se detentora exclusiva da preocupação com a desigualdade e a justiça social, colando na testa da direita o carimbo da perversidade e indiferença em relação à pobreza. (E o pior é que essa narrativa continua convencendo muita gente, que ainda hoje acredita que a esquerda é “do bem” e a direita é “do mal”.)

Um doce para quem adivinhar para onde Chávez foi, dois anos depois do golpe frustrado, quando saiu da prisão (após receber indulto do novo presidente), em dezembro de 1994. Isso mesmo, Cuba, onde o comandante golpista foi recebido com honras de chefe de Estado por Fidel Castro, um dos mentores (ao lado de Lula) do Foro de São Paulo, criado poucos anos antes. As primeiras palavras do venezuelano na ilha foram: “Esperamos chegar a Cuba em condições de nos alimentarmos mutuamente em um projeto revolucionário latino-americano”.

Já ano seguinte, em maio de 1995, Chávez foi um dos convidados da nova reunião do Foro de São Paulo, realizada em Montevidéu: além de receber a carteirinha de membro da entidade, Chávez passou a contar com o seu apoio explícito – apoio que se traduziu em assessorias diversas, propaganda e recursos financeiros. Naturalmente, a expectativa era que o venezuelano retribuísse o favor quando chegasse ao poder.

Isso aconteceu em 1998, quando Chávez foi finamente eleito – graças, previsivelmente, a uma plataforma centrada no discurso de inclusão social e combate à pobreza. Milhões de petrodólares venezuelanos passaram então a sustentar o decadente regime cubano, mas não apenas isso: Havana se tornou um centro de distribuição de recursos para impulsionar campanhas eleitorais de partidos de esquerda em toda a América Latina – via acordos econômicos de fachada, contratos mandrakes com a PDVSA (a estatal petroleira venezuelana), e outras formas de parceria.

Foi exatamente naquele ano que o advogado paulista José Carlos Graça Wagner escreveu artigos pioneiros com denúncias ao Foro de São Paulo. Em fevereiro de 1998, por exemplo, Wagner escreveu, em artigo na “Folha de S.Paulo”:

“Com a previsão do colapso da URSS, as cúpulas do PC de Cuba e do PT do Brasil formularam estratégias para manter o "socialismo" em Cuba e fazê-lo expandir-se para o continente. Se Lula vencesse as eleições presidenciais daquele ano, assumiria o apoio logístico para a sobrevivência do regime cubano. Caso contrário, hipótese admitida expressamente por Fidel, seria formada uma intercontinental socialista, coordenada pelo petista. Ela se formou em 1990, sob o nome de Foro de São Paulo, com o MST como ponta-de-lança. O Foro visa trabalhar pela sobrevivência e expansão do fidelismo, por mais utópica que seja tal façanha.”

(Infelizmente ninguém levou muito a sério os artigos de Wagner, que foi devidamente cancelado: com a chegada do PT ao poder, seu escritório de advocacia perdeu vários clientes que não queriam se indispor com os governantes da vez.)

Chávez foi eleito democraticamente, mas, uma vez instalado no Palácio Miraflores, sede da presidência na Venezuela, ele estabeleceu o padrão que se tornaria um modelo para muitos partidos de esquerda na América Latina, congregados no Foro de São Paulo: avesso à alternância no poder, uma das características fundamentais de qualquer democracia, ele passou a subverter as instituições, cooptar ou controlar a mídia, perseguir adversários, demonizar a oposição. E, principalmente, colocar a corrupção a serviço de um projeto de perpetuação no poder.

(Qualquer semelhança com o Brasil de anos recentes não é mera coincidência: a corrupção tradicional e endêmica desde sempre no país, de “roubar para colocar o dinheiro no bolso”, foi substituída por uma corrupção sistêmica, ainda mais nociva, que usava recursos de empresas estatais e privadas para enriquecer e tornar imbatível o partido no poder, com o aparelhamento progressivo da máquina do Estado.)

Ou seja, Chávez fez o diabo para se perpetuar no poder – de onde, aliás, só saiu morto, em 2013, após 14 anos como ditador – e deixando em seu lugar outro ditador, no poder desde 2012. O resultado todos conhecem: fome, miséria e escassez, medo e censura. A Venezuela é hoje um cenário de terra arrasada: um país onde adversários do governo são perseguidos, presos, torturados e executados; onde os meios de comunicação são totalmente controlados pelo Estado; onde falta até papel higiênico nos supermercados; onde os direitos humanos são rotineiramente desrespeitados; onde mães entregam os filhos para adoção por não terem como alimentá-los; um país, em suma, do qual mais de 4,5 milhões de venezuelanos já fugiram, isso somente desde que Maduro assumiu o poder.

A aliança entre Cuba e Venezuela foi formalizada em outubro de 2000, quando foi assinado um convênio que comprometia a Venezuela a fornecer petróleo quase que gratuitamente à ilha de Fidel. Como contrapartida, Cuba enviou um exército de médicos, professores e assessores militares a Caracas, que se tornou de forma explícita a ponta-de-lança do projeto castro-comunista no continente.

O segundo ciclo do Foro de São Paulo:

Começava assim o segundo ciclo do Foro de São Paulo, marcado pela expansão da esquerda no continente. Em 2002, Lula foi eleito no Brasil; em 2003, Néstor Kirchner foi eleito na Argentina em 2003; em 2004, Tabaré Vásquez foi eleito no Uruguai e Leonel Fernández foi eleito na República Dominicana; em 2005, Evo Morales foi eleito na Bolívia. Em 2006, foram eleitos Michelle Bachelet no Chile, Rafael Correa no Equador, René Preval no Haiti e Daniel Ortega na Nicarágua. Em 2008, Fernando Lugo foi eleito no Paraguai; e Mauricio Funes foi eleito em El Salvador em 2009. Naquele ano, 14 países da América Latina eram governados por presidentes associados ao Foro, incluindo Fidel Castro e Hugo Chávez.

Para usar uma gíria já antiga do tráfico carioca: estava “tudo dominado”.

Denúncias não tardaram a aparecer: no México, o Partido da Ação Nacional acusou Chávez de financiar a campanha do candidato mexicano Andrés Manuel López Obrador – hoje presidente; o presidente guatemalteco Óscar Berger criticou severamente as tentativas de ingerência da Venezuela na América Central; na Nicarágua, o presidente Eduardo Montealegre denunciou o apoio financeiro venezuelano à oposição sandinista comandada por Daniel Ortega, hoje presidente, inclusive na compra de votos ; o presidente boliviano Tuto Quiroga denunciou Chávez junto à Organização dos Estados Americanos – OEA por interferir em assuntos internos de seu país - que teriam resultado na eleição de Evo Morales (Morales ficou no poder de 2006 a 2019, quando foi obrigado a renunciar após denúncias de fraudes nas eleições); em El Salvador, o presidente Elías Antonio Saca protestou contra o repasse de recursos da PDVSA à Frente Farabundo Martí; no Peru, o primeiro-ministro Jorge del Castillo denunciou a ingerência e tentativa de desestabilização do governo venezuelano. Etc.

Todas essas denúncias caíram no vazio. É preciso reconhecer que os partidos de centro e direita se mostraram incompetentes até para perceber o que estava acontecendo, muito menos para reagir. (Continua)

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