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Uma creperia em Ipanema e a moral do nosso tempo
| Foto: Reprodução Instagram

Cerca de um mês atrás, os moradores de Ipanema, bairro outrora nobre da cidade do Rio de Janeiro, imortalizado por Tom Jobim e Vinicius de Morais,  foram surpreendidos pela abertura, em sua principal avenida, de uma creperia chamada “La Putaria”, especializada em doces como os “piroffles” (!) e “xoxoffles” (!), waffles em forma de... Você já entendeu.

Vou poupar o leitor das imagens. Mas, diga-se de passagem, produtos assim (oh, que ousados e transgressores!) sempre existiram – só que eram vendidos, de forma compreensivelmente discreta, em estabelecimentos especializados em itens eróticos, não em uma loja de rua, com a logomarca em forma de pênis, à vista de todo mundo e na proximidade de escolas, creches, uma praça e uma igreja.

Como era previsível, a loja encheu de gente. Como também era previsível, moradores e comerciantes do bairro não gostaram da proposta da creperia e tomaram as providências que julgavam cabíveis.

Acionada pela Associação de Moradores e Amigos de Ipanema e pela Câmara de Dirigentes Lojistas do Rio de Janeiro, a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacom) determinou: 1) que o letreiro da loja fosse coberto; 2) que a loja não expusesse seus produtos na vitrine; e 3) que a venda dos doces eróticos fosse proibida para menores de idade.

O presidente da Associação de Moradores declarou o seguinte:

“A revolta vem aumentando de forma assustadora. (...) Temos uma lei que regulamenta letreiros de cinema pornô, por exemplo. (...) O nome dessa loja, exposto em via pública, é o que está mais causando alvoroço. Ipanema é um bairro tradicional, ali do lado tem a Igreja Nossa Senhora da Paz, uma praça com crianças, mães e babás. Colocar ‘Putaria’ assim, no meio da rua, é complicado”.

Parece apenas bom senso, não? Ou virou bagunça? Pois bem, imediatamente a galera progressista do bem, que adora ostentar virtude, se mobilizou para classificar as sanções impostas à creperia como censura, moralismo e fascismo (só faltou genocídio). Mas isso também era previsível.

Vejam que interessante: a mesma turma que adora censurar os outros e apontar o dedo, que não sabe interpretar meme, que confunde elogio com assédio e quer até criminalizar o “olhar invasivo com conotação sexual”, a mesma turma que, em suma, odeia a liberdade de expressão quando ela é exercida pelos outros, acha bonito uma creperia chamada “La Putaria” expor e vender “piroffles” (e "xoxoffles”).

O episódio, ainda que banal e até engraçado (seria cômico se não fosse trágico), é bastante representativo da moral do nosso tempo. Os argumentos de advogados, psicólogos, sociólogos e outros especialistas ouvidos nas reportagens sobre o assunto, que transcrevo e comento a seguir, falam por si. (São todos a favor da Putaria: alguma surpresa?)

O mais assustador é que parece ser sincera essa incapacidade de perceber, entender, aceitar e respeitar o direito do outro

“Trata-se de uma censura orquestrada em ano eleitoral, que nasce de um procedimento anômalo dentro do Ministério da Justiça. (...) Só aconteceu porque estamos em um ano eleitoral com uma pauta de plataforma eleitoral que se alinha com questões de censura moral”. 

Certo. Se não fosse ano eleitoral, todos os moradores e comerciantes vizinhos da loja achariam bonito e se tornariam até clientes. (Mas vou além: a abertura de lojas assim só favorece a reeleição de Bolsonaro. Não é difícil entender por quê.)

“La Putaria nem é uma palavra portuguesa, mas espanhola, e pode significar muitas coisas”.

Certo. Ninguém vai pensar que a palavra tem uma conotação sexual, sobretudo em uma loja que vende “piroffles” e “xoxoffles”.

“Em pleno 2022, em uma cidade como no Rio de Janeiro, em que as pessoas andam de biquínis frequentando restaurantes... Considero, no mínimo, uma contradição”

Certo. As pessoas entram em restaurantes fora da orla do Rio de Janeiro de biquini. Super normal. Aham. (Mas, mesmo que fosse assim, estariam de biquini, né? Não com a genitália exposta.)

“É a volta da censura. (...) parece que não é possível empreender no Brasil de forma correta e legalizada, gerando empregos e pagando impostos. Será que estão preocupados com tantas crianças que vemos no bairro passando fome e pedindo dinheiro?  

Certo. A abertura de uma creperia especializada em doces eróticos contribui para que as crianças de rua deixem de pedir dinheiro e passar fome. (Por outro lado, a censura está voltando sim – e é até comemorada quando cala adversários políticos. Tudo em nome da democracia.)

“É urgente quebrar essa repressão que nos acompanha perpassando anos e entender que empresas como essa favorecem essa quebra e trabalham educação em sexualidade. A partir do momento que naturalizo mais meu corpo, me sinto melhor com ele.”

Certo. Por que, então, não andamos pelados? Quebraríamos de vez essa repressão fascista!

O mais assustador é que parece ser sincera essa incapacidade de perceber, entender, aceitar e respeitar o direito do outro de não achar bonito que “piroffles” e “xoxoffles” sejam expostos e vendidos sem qualquer pudor em uma loja de rua, com uma logomarca na forma de pênis. Mas pode ser, também, apenas fingimento: o propósito seria mesmo agredir, chocar, esfregar na cara na cara de pessoas educadas a própria falta de educação.

Na falta de senso de limite, que inclui obviamente o respeito ao limite dos outros; na celebração do mau gosto, da vulgaridade e da baixaria; no nivelamento por baixo de todas as manifestações culturais, a ponto de tornar inútil a própria ideia de cultura (voltarei a este tema); na satanização e desqualificação de qualquer discordância, crítica ou contraponto; e, sobretudo, no ataque impiedoso e incessante ao que resta de valores morais compartilhados, sem os quais uma sociedade não sobrevive: em tudo isso é possível enxergar um processo deliberado e altamente preocupante de corrosão e desmantelamento das regras de convívio em sociedade.

Vamos ver no que isso vai dar.

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