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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Censura

Uma defesa apaixonada da liberdade de expressão

De um lado, a primeira edição de "Areopagítica", publicada em 1644. De outro, o retrato de John Milton, obra de William Faithorne (1904). (Foto: Library of Congress EUA/Swyddogol e Llyfrgell Genedlaethol Gales/Wikimedia Commons)

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O país assiste, entre perplexo, amedrontado e desesperançado, à imposição de crescentes restrições à liberdade de expressão, à normalização da censura e ao suicídio moral das grandes empresas de jornalismo – tudo em nome da defesa da democracia. Nesse contexto, um panfleto publicado na Inglaterra há quase 400 anos ressoa fortemente no Brasil de hoje.

Trata-se de “Areopagítica”, escrito em 1644 pelo poeta e polemista John Milton (1608-1674), o mesmo autor de “Paraíso perdido”. O título faz referência a um discurso do orador ateniense Isócrates, do século 5 a.C.: o Areópago era a colina onde o Supremo Tribunal da época se reunia para deliberar sobre questões relevantes para a sociedade, como a criação de impostos e os direitos dos cidadãos.

No panfleto, publicado no Brasil pela editora Topbooks, John Milton repudia de forma vigorosa a censura e fez uma defesa apaixonada da liberdade de expressão. Ele afirma que, em qualquer sociedade, a verdade e a falsidade devem ser confrontadas em um "mercado de ideias", sem restrições, para que a primeira possa prevalecer.

O texto foi uma resposta eloquente às tentativas de impor censura prévia à imprensa da época, o que Milton enxergou como uma ameaça à busca pela verdade e ao desenvolvimento intelectual da sociedade.

Até hoje, nas democracias dignas do nome, “Areopagítica” continua sendo uma referência nos debates sobre a liberdade de expressão. A obra representou o marco inicial da tradição moderna de combate à censura e influenciou todo o pensamento jurídico do Ocidente. Os argumentos de Milton já foram usados diversas vezes como contraposição às recorrentes tentativas estatais de impor à sociedade alguma forma de censura.

Na época de Milton a Inglaterra era governada pelo Rei Carlos I, um entusiasmado defensor do controle da imprensa. Durante seu atribulado reinado (1625-1649), Carlos I, como muitos monarcas da época, via a censura como uma ferramenta para preservar a ordem e evitar a disseminação de ideias que pudessem ameaçar o poder real, ou causar instabilidade social.

O controle sobre a imprensa era exercido por meio de licenças reais: o rei tinha o poder de proibir publicações consideradas falsas ou subversivas, bem como banir as plataformas que as veiculassem. Ou seja, no século 17 já se usavam as “fake news” como pretexto para silenciar e intimidar opositores e restringir a liberdade de expressão.

Capa do livro "Areopagítica: Discurso Pela Liberdade de Impressão ao Parlamento da Inglaterra", de John Milton. (Foto: Reprodução/Topbooks Editora)

A sociedade se dividiu entre aqueles que apoiavam a censura e aqueles que a combatiam. As tensões explodiram em 1642, quando Carlos I tentou prender parlamentares, episódio que já evoquei em artigo. Os nomes dos parlamentares ingleses que reagiram ao abuso real são lembrados até hoje. Já os parlamentares brasileiros de hoje, com raras exceções... Deixa pra lá.

A agitação política se intensificou, e naquele mesmo ano teve início a Guerra Civil Inglesa (1642-1651), que opôs os "Cavaleiros" (realistas, que apoiavam o rei) aos "Cabeças Redondas" (parlamentaristas, que buscavam limitar o poder do rei). O apelido se deve ao corte de cabelo curto e simples que os parlamentaristas usavam, contrastando com os cabelos longos e as perucas exuberantes usadas pelos realistas.

Carlos I acreditava no direito divino dos reis e, portanto, não se julgava obrigado a prestar contas a ninguém. Por isso mesmo, tentou governar sem o Parlamento e criar impostos sem aprovação do Poder Legislativo.

Motivada por uma série de disputas políticas, religiosas e econômicas, a Guerra Civil fez o rei intensificar a repressão à livre circulação de ideias. O efeito foi contrário ao planejado, pois levou à publicação clandestina de diversos panfletos críticos ao governo. Foi nesse contexto que “Areopagítica” apareceu, desafiando a censura.

Milton afirma que a censura é moralmente prejudicial porque infantiliza a sociedade e impede o cidadão de julgar por si o que é verdadeiro ou falso   

Para Milton, a liberdade de expressão é um direito natural e inalienável, essencial para a dignidade humana e o funcionamento saudável da Justiça. É um pilar fundamental de uma sociedade justa e próspera.

A questão era também pessoal para Milton, pois ele próprio havia sofrido censura. Seu tratado em defesa do divórcio, publicado anonimamente e sem licença, foi condenado por heresia e por promover a libertinagem sexual.

Ao impedir a disseminação de ideias, a censura impede a sociedade da oportunidade de refutar argumentos falsos. Por isso mesmo, acreditava Milton, até mesmo os livros ruins ou heréticos devem ser publicados livremente, porque podemos aprender com seus erros.

“Deus dotou cada pessoa com a razão, o livre arbítrio e a consciência para julgar as ideias, que devem ser aprovadas ou rejeitadas por escolha do próprio leitor, não por uma autoridade do governo”, escreve Milton. "Dê-me a liberdade de saber, de falar e de argumentar livremente de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades", ele continua, inaugurando a tese de a liberdade de expressão é a mais importante de todas as liberdades, já que, sem ela, todas as outras liberdades correm risco.

Sempre segundo o autor, a censura é moralmente prejudicial porque infantiliza a sociedade e impede o cidadão de julgar por si o que é verdadeiro ou falso. Mas não é só isso: a censura é também ineficaz, porque pode atrapalhar e retardar, mas não consegue impedir a disseminação do pensamento crítico, que sempre encontrará uma maneira de se espalhar, mesmo sem VPN.

Milton prossegue: “A constatação dos limites do conhecimento humano implica tanto a necessidade do pluralismo para o progresso espiritual da coletividade quanto a desconfiança em relação à autoridade dos censores, os quais, para exercer tal função, deveriam ser dotados da graça da infalibilidade e da incorruptibilidade, o que obviamente não é o caso”.

E conclui: “Todos somos falíveis, inclusive os censores. Tanto os governantes podem escolher mal os censores quanto os censores podem julgar mal os livros. Além disso, as pessoas não podem ser tratadas como crianças necessitadas de tutela. Serão elas levianas, imorais, sem formação sólida, doentes, debilitadas, num estado de tão pouca fé e fraco discernimento que seriam incapazes de engolir nada que não passasse pelo filtro de um censor? A determinação do verdadeiro e do falso, do que deve ser publicado ou suprimido, não pode estar nas mãos de poucos”.

Retrato de Carlos I Stuart (1600-1649), rei da Inglaterra, obra de Gerard van Honthorst. (Foto: Jonathan Jansen/Essential Vermeer/Wikimedia Commons)

Outro argumento do autor é que a censura sufoca o progresso, ao impedir o acesso a informações e ideias que podem levar à inovação e ao desenvolvimento. Isso porque o progresso depende da capacidade das pessoas de refletir e discutir livremente, sem a interferência das autoridades – inclusive no contexto da religião, particularmente relevante na época: Milton achava que a censura religiosa era um grande obstáculo à verdadeira fé e ao crescimento espiritual.

Carlos I não teve um final feliz: acabou sendo preso e levado a julgamento em um tribunal especial, que o acusou de ser um "tirano, traidor, assassino e inimigo público". Considerado responsável pela eclosão da guerra civil, bem como pelas mortes e destruição que se seguiram, o rei foi condenado à morte e decapitado em 30 de janeiro de 1649, em uma cerimônia pública no Palácio de Whitehall, em Londres.

Foi a primeira vez que um monarca reinante foi julgado e executado por seu próprio povo, evento sem precedentes na história inglesa. Após a execução, a monarquia foi abolida e a Inglaterra foi declarada uma república, sob a liderança de Oliver Cromwell.

A execução de Carlos I trouxe uma novidade significativa na relação entre governantes e na Inglaterra: a ideia de que até mesmo um rei no poder deve ser responsabilizado por suas ações.

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