Se ainda existisse liberdade de expressão plena no Brasil, eu teria a seguinte opinião: nunca antes na história deste país um processo eleitoral foi tão contaminado e comprometido pela parcialidade de atores que deveriam ser, justamente, os fiadores da lisura, da limpeza e da transparência da disputa. Seja qual for o resultado das urnas no próximo dia 30, isso terá consequências ruins para a sociedade.
Falo, evidentemente, de representantes da Justiça e da grande mídia. Semana após semana, mês após mês, uma e outra fizeram questão de manifestar em atos e palavras qual era a sua preferência, qual era o seu lado. Aderindo sem qualquer cerimônia à narrativa do “nós contra eles” que tanto mal faz ao país e à defesa da “democracia de um lado só”, tentaram convencer os brasileiros de que o resultado desta eleição já estava dado, de que era jogo jogado.
Pior: quem discordasse disso era imediatamente desqualificado como fascista – estando sujeito, portanto, às sanções da censura e do ódio do bem, ou mesmo a operações de busca e apreensão por conversas em grupos particulares de WhatsApp.
O raciocínio subliminar é mais ou menos o seguinte: quem não vota no candidato apoiado pela Justiça e pela grande mídia representa uma ameaça à democracia. E quem ameaça a democracia tem mais é que ser censurado, perseguido e preso.
“Preso por crime de opinião?”
“Sim, veja bem: vivemos em uma situação de exceção, na qual a democracia corre risco, e situações de exceção pedem medidas de exceção. O fundamental agora é derrotar o fascismo. Liberdade de expressão a gente vê depois. Mas fique tranquilo, porque depois que esmagarmos os fascistas as coisas voltarão ao normal.”
“Mas por que a democracia está correndo risco?”
“Você não ouviu o que o ministro do Supremo falou?”
“Mas juiz pode ter lado?”
“Se você está perguntando isso, é porque você é um fascista. Vou cancelar você e fazer campanha para você perder seu emprego. Nem o Neymar está livre disso, então se eu fosse você ficaria calado.”
Bastariam as pesquisas com previsões fajutas para gerar um clima de desconforto mesmo entre os eleitores honestos de quem está na frente, porque uma situação de desconfiança em relação à manipulação da vontade do eleitor não afeta apenas o lado prejudicado, mas a sociedade inteira.
Ainda que tenham errado de forma grotesca e escandalosa apenas por incompetência, os institutos de pesquisa podem ter influenciado significativamente os resultados do primeiro turno, como demonstra qualquer análise intelectualmente descomprometida.
Mas o fato é que muita gente duvida que tenha sido apenas por incompetência. Muita gente acredita que houve tentativa de manipular o eleitor e criar de um fato consumado, uma profecia autorealizada.
Nesse contexto, um cidadão tem o direito de pensar: “Tivesse dado certo o plano de influenciar o eleitor, Lula teria sido eleito em primeiro turno sem sequer divulgar um programa de governo, com carta branca para fazer o que quisesse. Não apenas isso: o PT e seus aliados estariam na frente na disputa pelo governo em São Paulo e em outros estados importantes; e a composição do Congresso seria outra, com outros senadores e deputados eleitos”.
É compreensível que esse cidadão pense assim, porque foi este o clima criado por quem deveria zelar pela neutralidade do processo eleitoral – e que tem, como a mulher de César, não somente a obrigação de ser honesto, mas também de parecer honesto.
Números errados geram percepções erradas, que por sua vez levam a expectativas erradas, que por sua vez levam a decisões mal motivadas: não somente do eleitor que votou útil porque foi convencido da vitória de Lula no primeiro turno, mas também do financiador de campanha, que não queria perder dinheiro e preferiu alocar seus recursos e seu apoio nos candidatos apontados como barbada.
Não foi apenas na eleição para presidente. Qual terá sido o efeito dos erros em série das pesquisas no potencial de votos de candidatos a deputados, senadores e governadores equivocadamente vendidos como derrotados, em eleições previamente decididas nas planilhas dos institutos e apresentadas pelos cabos eleitorais da mídia em clima de campanha e manchetes lacradoras? Impossível quantificar. Mas algum efeito teve, e não foi pequeno.
Ganhando ou perdendo, o brasileiro comum só quer acreditar na neutralidade do processo, sem manipulação nem sabotagem
Pelo menos esses institutos e seus patrocinadores reconheceram seus erros e anunciaram ajustes de metodologia para o segundo turno? Nada disso: teimaram na matemática orwelliana de que dois mais dois podem ser cinco, de que margem de erro de dois pontos é a mesma coisa que margem de erro de 15 pontos. As pesquisas são "retratos", elas “não acertam nem erram”. Quem não entende isso é porque é burro.
E o tratamento da Justiça Eleitoral às duas candidaturas continua sendo abertamamente desigual. A imprensa não pode falar que um candidato é amigo do ditador Daniel Ortega, relação fartamente documentada.
Áudio da Polícia Federal com Marcola declarando sua preferência eleitoral também não pode. Entrevista da Mara Gabrilli falando do caso Celso Daniel também não. Já deputado do PT postar nas redes sociais que Bolsonaro vai confiscar a popupança não tem nada de mais: é fake news do bem.
O ministro da Saúde está proibido de anunciar a campanha de vacinação contra a poliomielite, algo inédito na História do país. Quando o cálculo do interesse eleitoral prevalece sobre a preocupação com a saúde das crianças, algo vai muito mal.
O brasileiro comum só quer acreditar no processo, ganhando ou perdendo a eleição. Por isso mesmo, desde a redemocratização ele sempre respeitou e se conformou pacificamente com o resultado das urnas - mesmo aquele eleitor que estava do lado que foi sucessivas vezes derrotado. Democracia é assim. Quem nunca se conformou com a derrota, aliás, foi a oposição ao atual governo eleito.
Esse respeito sempre foi a norma, porque havia a percepção generalizada de que as eleições eram conduzidas de forma razoavelmente neutra, sem tentativas de manipulação do eleitor, sem a sabotagem maciça e diária ao governo por parte dos grandes meios de comunicação, sem que ministros do STF manifestassem sua preferência nas linhas e entrelinhas de seus decretos e declarações.
Não é isso que está acontecendo nesta eleição, e a consequência é que ela assume cada vez mais os ares de luta de “um homem contra o sistema”. Não importa se isso pode prejudicar ou favorecer Bolsonaro. A percepção de um processo eleitoral não pode ser esta.
Eu juro que também quero acreditar no processo. Ninguém pode presumir que uma eleição da qual metade dos brasileiros saia se sentindo enganada ou roubada, ou injustamente beneficiada, mesmo que sem razão, será boa para o país.
Que futuro pode ter uma sociedade na qual metade das pessoas acredita que a eleição não foi conduzida de forma honesta? Que futuro pode ter uma sociedade na qual metade dos brasileiros acha certo censurar, odiar e perseguir a outra metade, que ela enxerga como composta por fascistas? Nada de bom pode vir daí.
O segundo turno tende a ser apertado. Ninguém sabe quem vai ganhar. Mas, seja qual for o presidente eleito, ele terá que lidar com a frustração e o desprezo de dezenas de milhões de brasileiros. Este já será um desafio imenso.
Mas, na eventual vitória de Lula, some-se ao que foi dito acima a questão de governabilidade, com um Congresso fortemente conservador e de direita e uma oposição capaz de colocar milhões de pessoas nas ruas diante da primeira crise. Como será a relação do Executivo com o Legislativo? E como a sociedade vai perceber essa relação?
Sem falar no que já chamei de maldição do vice: estatisticamente, no Brasil, sempre existe a possibilidade palpável de o vice ocupar o poder. Desde a redemocratização, oito presidentes tomaram posse no Brasil; três destes oito foram vices que herdaram o cargo. Nessa hipótese, começaria tudo de novo, com black blocs depredando as ruas e gritando “Fora Alckmin”? O Brasil ainda aguenta isso?
E qual será o efeito dessa difícil governabilidade no emprego, na inflação e na economia, que finalmente se recupera após a tragédia da pandemia? E na criminalidade e na segurança pública, que tanto angustiam todos os brasileiros? Estas são questões que deveriam estar afligindo neste momento o eleitor comum, mesmo aquele que afirma rejeitar os dois candidatos na mesma medida.
Mesmo que você esteja entre esses brasileiros que detestam Lula e Bolsonaro, não se omita por nojinho. Não votar não te protegerá das consequências da eleição do pior. Como escreveu Dante Alighieri 700 anos atrás, no Inferno os lugares mais quentes estão reservados àqueles que non furon ribelli né fur fedeli, aqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.
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