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Para uma coisa serviu o depoimento do ex-presidente Jair Bolsonaro à Polícia Federal realizado ontem: para o Brasil inteiro descobrir que a PF adota como procedimento protocolar perguntar aos depoentes – sejam testemunhas, sejam investigados – se eles se identificam como “cis”. Parece que a classificação passou a integrar recentemente oitivas e documentos oficiais.
Como era previsível, Bolsonaro não soube responder – como não saberiam responder, provavelmente, mais de 90% dos brasileiros: aqueles que moram no país real, e não na lacrolândia, no país das narrativas.
Estes brasileiros estão preocupados com outras coisas, como aliás o aumento visível da criminalidade, não com a identidade de gênero do ex-presidente, nem com neologismos artificialmente fabricados e impostos à sociedade de cima para baixo.
Resultado: para muita gente, um depoimento grave, sobre uma suposta tentativa de golpe de Estado, aguardado com grande expectativa e apreensão, caiu no ridículo, já que a única pergunta noticiada por todos os portais e jornais foi esta. Foi também a única que fez Bolsonaro romper seu silêncio: ele respondeu dizendo desconhecer o termo.
Mas, para além do caráter anedótico do episódio, cabe uma reflexão.
“Você é cis?” é uma pergunta que soa preconceituosa, estigmatizante, inoportuna, discriminatória, inadequada, intempestiva e até mesmo constrangedora, justamente porque isso não deveria fazer diferença nenhuma para a Polícia. Mas, se fazem a pergunta, é porque alguma diferença deve fazer.
Perguntar se alguém é “cis” equivale a perguntar se ele ou ela se identifica com seu sexo biológico. Mas isso é da conta da Polícia? Que diferença faz? Muda alguma coisa saber se um investigado ou testemunha é “cis”? A resposta gerará um tratamento desigualitário?
Agora imaginem, por alguns segundos, a repercussão que o episódio teria se fosse o contrário: começa o depoimento, e Bolsonaro pergunta ao delegado se ele se identifica com seu sexo biológico. Talvez recebesse voz de prisão na hora. No mínimo, seria acusado por toda a grande mídia de fóbico, golpista, fascista e genocida.
Não cabe ao Estado nem a ninguém se meter na intimidade do indivíduo, pelo risco implícito de prejuízo à imagem ou de exposição indevida
Para quem ainda não sabe, “cis” é um modismo relativamente recente adotado pela militância woke. Derivado do latim, significa “do mesmo lado”. À primeira vista, “cisgênero”, portanto, é toda pessoa que se identifica com seu sexo biológico.
Ou não exatamente, porque li agora outra definição, sutilmente diferente: cisgênero é a pessoa que se identifica com o sexo “que lhe foi atribuído ao nascer”: “Por exemplo, se uma pessoa é designada como mulher ao nascer e se identifica como mulher”.
Se entendi bem, parece que os bebês hoje em dia nascem sem sexo, e que o sexo é algo “designado” ou “atribuído” a posteriori, com base em características biológicas.
Ai ai ai, as coisas estão ficando muito complicadas. Antigamente o sexo de um bebê era um fato da biologia, ponto. Não era algo designado nem atribuído, era simplesmente algo constatado e registrado. As palavras ainda importam?
Mais preocupante, contudo, é outra mudança de costumes que o procedimento protocolar da PF explicita: antigamente as pessoas tinham direito à intimidade e à privacidade. A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948, assegurou que ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada.
E, em seu inciso X do artigo 5º, a Constituição Federal assevera: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Segundo juristas, o legislador visou, com isso, proteger o indivíduo da intromissão alheia em sua vida particular: o pressuposto é que não cabe ao Estado nem a ninguém se meter na intimidade de um cidadão, pelo risco implícito de prejuízo à imagem ou de exposição indevida.
Com base no exposto acima, a pergunta “Você é cis?”, na minha opinião, é duplamente ofensiva, porque o objetivo da tutela constitucional é proteger as pessoas de duas ofensas: a ofensa ao segredo da vida privada (ao direito à intimidade) e a ofensa à liberdade da vida privada (ao direito à vida privada).
Ora, se até uma baleia tem o direito de não ser importunada, qual o sentido de se perguntar a um ex-presidente – ou a qualquer cidadão – se ele se identifica com seu sexo biológico? Acredito que a melhor resposta a esta pergunta teria sido: “Não é da sua conta”.