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Luciano Trigo

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Como seria hoje...

Watergate, versão brasileira

Richard Nixon deixa Washinton após renunciar à Presidência (Foto: Reprodução Instagram)

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Casa Branca, Washington, final de 1972. Richard Nixon, do Partido Republicano, acaba de ser reeleito presidente dos Estados Unidos com uma vitória esmagadora: ele derrotou George McGovern, o candidato do Partido Democrata, em 49 dos 50 estados do país. Mas existe algo de podre na democracia na América.

“Presidente Nixon, tem dois jornalistas chatos pra caramba aqui na recepção querendo falar sobre aquele caso da campanha eleitoral. Digo que o senhor está ocupado e mando voltarem outro dia?”

“Sim, no Dia de São Nunca! Hahahahaha!"

“Presidente, o senhor é tão espirituoso! Hahahaha!”

“Mas que malas sem alça, hein? Não tenho um dia de sossego, assim fica difícil governar este país. Mas pode mandar os dois entrarem, eu converso com eles, tudo bem.”

(Entram no Salão Oval da Casa Branca os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein.)

“Boa tarde, Presidente. Nós somos do jornal ‘The Washington Post’ e gostaríamos de um depoimento seu sobre a invasão da sede do Partido Democrata...”

“Que invasão? Não fiquei sabendo, não posso falar sobre isso, ainda não fui informado. O que aconteceu? Vocês aceitam algo para beber?”

“Não, obrigado. Presidente Nixon, em 17 junho deste ano, durante a campanha eleitoral, cinco homens invadiram  a sede do Partido Democrata, no prédio do Hotel Watergate, para implantar escutas telefônicas e...”

“Desculpem, como vocês se chamam mesmo?”

“Bob e Carl”.

“Bob, o que eu tenho a ver com isso? Um bando de aloprados invade um prédio, e a culpa é do presidente dos Estados Unidos da América? Mas será o Benedito?”

“Presidente, um segurança do prédio foi quem disparou o alerta, porque...”

“Um segurança? Deixa eu dar um telefonema aqui rapidinho.”

(Nixon faz uma ligação de seu telefone, um pesado modelo discado dos anos 1970.)

“Aham. Aham. Entendi. Muito obrigado, Excelência, tamo junto.” (Nixon desliga e sorri.)

“Olha, meu jovem, eu fiquei sabendo agora que esse segurança é um fascista. A Suprema Corte já cancelou o passaporte dele, bloqueou suas contas bancárias e baniu os seus perfis de todas as redes sociais.”

“Redes sociais? Presidente, estamos em 1972, ainda não existem redes sociais”.

“Ah é. Mas não importa, o que interessa é que a Suprema Corte já tomou a iniciativa de dar uma lição exemplar nesse terrorista, porque evidentemente ele representa uma ameaça à democracia na América. Um membro da Suprema Corte, amigão meu, acabou de me avisar que o tal segurança já está na cadeia, preventivamente, aguardando julgamento por discurso de ódio e por espalhar mentiras que colocam em risco o Estado de Direito. Mas o processo corre em segredo de Justiça, então não posso falar mais nada.”

“Mas os cinco invasores da sede do Partido Democrata foram presos também?”

“Não, aí será preciso investigar. Eles têm direito à presunção de inocência, não é? Sem falar que podem estar sendo perseguidos, podem ser vítimas de fake news...”

Fake news”?

“Ah é, ainda não inventaram essa expressão. Deixa eu tentar explicar uma coisa para vocês. Esses moços podem ser jovens carentes que estão sendo usados pelos inimigos da democracia estadunidense para colocar em dúvida a lisura do processo eleitoral. Entenderam? Mas todo mundo sabe que o nossos sistema eleitoral é o melhor do mundo, depois da Venezuela.”

“Estadunidense? O senhor quis dizer norte-americana?”

“Ah é, corrige aí.”

"Entendam uma coisa, de uma vez por todas: qualquer crítica, qualquer imputação de irregularidade, qualquer contestação a este governo será considerada pelo Presidente e pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América um ataque à democracia e ao Estado de Direito"

“Presidente, o próprio FBI encontrou provas de que seu comitê de campanha espionou o Partido Democrata.”

“Sério? Vou trocar já a diretoria do FBI, assim não é possível. Vou colocar lá alguém isento, comprometido com a democracia, que entenda a importância de defender o Estado de Direito. Vocês têm certeza que querem mesmo escrever esta reportagem?”

“Presidente Nixon, o senhor está sugerindo que a gente não escreva a reportagem sobre Watergate?”

“Está maluco? Eu nunca sugeri isso. Vocês estão entendendo a gravidade do que estão falando? Não se pode permitir a censura neste país, sob qualquer argumento! Só em uma situação excepcionalíssima, é claro. Por essas e outras é que eu acho cada vez mais urgente regular as redes sociais, digo, a imprensa.

“Mas...”

“Aliás, o dono do ‘Washington Post’ sabe que vocês estão aqui? Vocês têm ideia da montanha de dólares que o governo gasta com publicidade no jornal que paga os seus salários? E por que será que todos os grandes jornais estão ignorando este assunto? O que vocês acham? Hein? Hein? Nem desconfiam?”

“Presidente Nixon, nós só estamos fazendo o nosso trabalho.”

“Aham, continuem assim e podem ter uma surpresinha. Pensem bem. E se a Justiça avaliar que vocês estão tentando abolir de forma violenta o Estado Democrático de Direito na América? Aliás, por que o ‘Washington Post’ mandou para a Casa Branca dois jornalistas homens, brancos e heterossexuais? É muita desfaçatez, cadê a representatividade? Onde estão as mulheres, os latinos e os representantes dos povos originários?”

“Mas, Presidente, encontraram um depósito de 25 mil dólares feito pelo seu comitê de campanha na conta bancária de um dos invasores.”

“É preciso investigar. Não é possível condenar alguém sem provas.”

(Nixon medita por alguns segundos e conclui:)

“Agora eu tenho outro compromisso, preciso encerrar nosso encontro. Mas entendam uma coisa, de uma vez por todas: qualquer crítica, qualquer imputação de irregularidade, qualquer contestação a este governo será considerada pelo Presidente e pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América um ataque à democracia e ao Estado de Direito. Liberdade de expressão não é liberdade de atacar a democracia.”

(Neste momento Bob Woodward faz uma cara muito séria e, finalmente convencido da inocência de seu interlocutor, pergunta:)

“Presidente Nixon, então o senhor nega qualquer envolvimento no Escândalo de Watergate? Olhe para a lente da verdade e responda: o senhor não deve nada à Justiça dos Estados Unidos da América?”

“Nada! E que escândalo? Não tem escândalo nenhum. O que tem é gente mal intencionada tentando atacar a democracia, porque nós derrotamos o McGovernismo. Respeitem a Constituição americana, vocês perderam, Manés! Comigo vocês não vão se criar, porque o amor venceu na América, terra da liberdade, lar dos bravos.”

(uma lágrima escorre pelo rosto de Bob Woodward.)

“Muito obrigado, Presidente Nixon, nós vamos reavaliar a pauta.”

“Imagina, eu que agradeço. Eu sempre digo que a imprensa livre e independente é um dos pilares da democracia americana. Mas quero perguntar uma coisa. Quem foi que passou para vocês essas informações todas sobre Watergate?”

“Foi o Garganta Profunda.”

“Garganta Profunda? Excelente filme!”

PS. Este é um texto de ficção. Para refrescar a memória do leitor, na vida real o escândalo de Watergate revelado pelo "Washington Post" resultou no processo de impeachment do presidente Richard Nixon - depois que, por pressão da imprensa e da população, o Senado norte-americano criou uma comissão para investigar o caso.  Nixon acabou renunciando em 8 de agosto de 1974. em um discurso dramático transmitido ao vivo pela TV:

Um mês depois de tomar posse, o vice-presidente Gerald Ford concedeu perdão a Nixon por qualquer eventual crime cometido como Presidente, nas vários assessores seus foram presos e condenados (além dos cinco invasores e seus cúmplices).

Os premiados jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein transformaram suas reportagens sobre o escândalo no livro “Todos os homens do Presidente”, mais tarde adaptado para o cinema, com Robert Redford e Dustin Hoffman nos papéis principais.

“Garganta Profunda” (“Deep Throat”) era o codinome do informante secreto dos dois jornalistas. A recomendação que ele fez à dupla ficou famosa: “Sigam o dinheiro”. Sua identidade só foi revelada em 2005, mais de 30 anos depois. “Deep Throat” era também o título de um filme pornográfico que fez muito sucesso nos anos 70.

Outros tempos, outro jornalismo. Outra democracia.

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