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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Woody Allen, Spike Lee e a cultura do cancelamento

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“Eu só quero dizer que Woody Allen é um grande, grande cineasta, e essa coisa de cancelamento não é só sobre Woody. Quando olharmos para trás, veremos que, a não ser matando alguém, não sei se você pode apagar uma pessoa como se ela nunca tivesse existido. Woody é meu amigo, um colega fã dos [New York] Knicks, e eu sei que ele está passando por isso agora."

A declaração acima foi feita pelo cineasta Spike Lee na sexta-feira passada, durante uma entrevista a um programa de rádio nova-iorquino, “The Morning Show”. O diretor de “Faça a coisa certa” e outros longas-metragens de sucesso – o programa era sobre seu último filme, “Destacamento Blood”, que acaba de ser lançado na Netflix – só disse verdades. Ele merecia ser aplaudido, por três motivos:

- Primeiro, por exaltar a importância de Woody Allen como cineasta: querer apagar o diretor de “Manhattan”, “Hannah e suas irmãs” e “Crimes e contravenções” da História do cinema é querer mudar o passado, proposta por si só autoritária e perigosa, digna da mentalidade autoritária das piores ditaduras;

- Segundo, por apoiar o direito de defesa de Woody Allen em uma história que é, na pior das hipóteses, controversa (ele foi acusado de ter abusado sua filha adotiva, Dylan Farrow, em 1992), uma vez que nunca foram apresentadas provas conclusivas, apenas alegações, todas devidamente contestadas, publicamente e na Justiça (mas o tribunal das redes sociais não liga para isso);

- Terceiro e mais importante, por criticar a “cultura do cancelamento” que não cessa de fazer vítimas nestes tempos estranhos em que vivemos, quando autodenominados antifascistas vandalizam estátuas de Cristóvão Colombo, Winston Churchill e até Mahatma Gandhi.

Mas Spike Lee não recebeu nenhum aplauso por sua declaração, ao contrário: ao que tudo indica, tornou-se ele próprio objeto de ameaças veladas da milícia politicamente correta sempre pronta a vigiar, perseguir e destruir. Lee não resistiu à pressão: no dia seguinte à entrevista, voltou atrás e se retratou no Twitter. Aparentemente, o medo de ser ele próprio “cancelado” foi maior que a coragem de sustentar suas opiniões:

"Peço desculpas profundamente”, escreveu. “Minhas palavras estavam erradas. Eu não tolero e não tolerarei assédio, agressão ou violência sexual. Isso causa danos reais que não podem ser minimizados".

Reparem que a premissa desse pedido de desculpas é que Woody Allen é culpado – não apenas de assédio, mas também de agressão e violência sexual. Às favas a presunção de inocência e todas as circunstâncias que tornam o caso controverso, na pior das hipóteses, como o fato de a denúncia original ter sido feita em meio a um processo litigioso de separação de Mia Farrow.

Nada disso tem importância. Para agradar aos seus pares e não ser cancelado, Spike Lee entregou à turba, via Twitter, a cabeça daquele que, na véspera, chamara de amigo.

É isso o que o ambiente de medo e patrulha, que hoje se dissemina como um vírus, provoca nas pessoas: desperta o que elas têm de pior. Em algumas é o ódio; em outras, o medo e a covardia. Muitas, movidas pelo ressentimento e pela inveja, se comprazem com a destruição de artistas que diziam admirar: o ódio mobiliza mais do que o amor, e o prazer de ver uma estrela cair é maior que o de ver uma estrela brilhar.

A mesma covardia ficou patente quando a Amazon desistiu de incorporar o último filme de Woody Allen, “Um dia de chuva em Nova York”, ao catálogo de sua plataforma de streaming, rompendo unilateralmente um contrato com base na viralização de ataques contra o cineasta nas redes sociais.

A mesma covardia também ficou escancarada quando, pateticamente, atores do filme citado se disseram “arrependidos” de trabalhar com Woody Allen, caso de Timothée Chalamet, Ellen Page e Rebecca Hall. Uma das poucas atrizes a romper o piquete virtual e apoiar Woody Allen foi Scarlet Johansson – e ela foi duramente criticada por isso.

(Na época desse linchamento “do bem” promovido pelo elenco de “Um dia de chuva...”, Woody Allen fez um diagnóstico preciso: "Esses atores não têm ideia dos fatos e se apegam a uma posição segura, pública e egoísta. Quem no mundo não é contra o abuso sexual de crianças? Mas é assim que atores e atrizes são, e me denunciar se tornou a coisa mais elegante a se fazer”.)

A mesma covardia também se explicitou no último mês de março, quando a editora francesa Hachette desistiu de publicar o livro de memórias do cineasta, “Apropos of nothing”, às vésperas do lançamento.

A cultura do cancelamento desperta nas pessoas o que elas têm de pior: ódio e inveja, medo e covardia

A cultura do cancelamento é a nova roupagem do assassinato de reputações em voga nas redes sociais: elege-se um inimigo, cola-se nele um rótulo qualquer, e o cidadão é sumariamente julgado, condenado e esfolado na praça pública da internet, sem direito a defesa nem contraditório.

É uma prática covarde, que pode gerar danos irreparáveis: mesmo que mais tarde fique provada a inocência do réu, sua imagem já ficou irremediavelmente comprometida por um tribunal de exceção, composta por gente que só ataca em bando e pratica diariamente o ódio, apesar de pregar um discurso de amor. E jamais se vê um pedido de desculpas pelo dano causado.

Somente o medo desse “ódio do bem”, aliás, explica o silêncio ensurdecedor da classe artística diante da CENSURA (pois de outra coisa não se trata) ao filme “...E o vento levou”, obra canônica do cinema americano.

Ou o pedido de desculpas do humorista da Porta dos Fundos acusado de gordofobia (mas o Porta dos Fundos se arvorou em defensor inflexível da liberdade de expressão no caso da cristofobia, quando um especial de Natal mostrando um Jesus caricatamente gay ofendeu muito mais gente).

Ou tantas outras retratações públicas que vêm se acumulando nos últimos anos, dignas das confissões encenadas nos julgamentos de Moscou, na época de Stálin.

Animação "Patrulha Canina" e linha policial da Lego: novas vítimas da lacração

A censura a “...E o vento levou” representa um novo patamar nessa escalada de insensatez: uma fronteira perigosa foi ultrapassada, e esse processo continua: na semana que passou, até um desenho animado, “Patrulha canina”, foi atacado por ativistas por – pasmem – representar policiais de forma positiva.

É sério, e não parou aí: a Lego parou de vender sua linha policial (delegacia, carros de polícia, bonequinhos de guardas fardados), em respeito à memória de George Floyd. E quem tentar explicar que um policial assassino não é a mesma coisa que a instituição da polícia, sem a qual a sociedade se esfacelaria em questão de dias, corre o risco de ser chamado de fascista.

É prudente os intelectuais e artistas acordarem, antes que seja tarde. Já ficou claro que qualquer pessoa está sujeita a passar de estilingue a vidraça, pelos motivos mais fúteis.

Não basta Elizabeth Bishop ter sido mulher e homossexual, por exemplo, além de poeta de primeira; como ela não fez a escolha política “certa” 60 anos atrás, despertou a ira dos canceladores, que exigiram que a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) deixasse de homenageá-la.

Aliás a FLIP, que se transformou em um templo da lacração nos últimos anos, é a prova viva desse fenômeno: quem com lacre lacra com lacre será lacrado. Quem aponta o dedo para o outro logo terá dezenas de dedos apontados contra si. Basta ter olhos para ver que isso já está acontecendo, inclusive entre membros de minorias. Parafraseando Andy Warhol: no futuro, todos serão perseguidos por 15 minutos.

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