Antônio de Oliveira trabalha como motorista de um gabinete na Câmara com salário de R$ 3 mil. Paralelamente, ele é sócio da Harue Locadora, que faturou R$ 1,6 milhão em oito anos alugando carros para deputados. Essa é apenas uma das histórias de 2.605 secretários parlamentares que são sócios de empresas. Em muitos casos, trabalham como pessoa jurídica para o próprio parlamentar que os contratou como assessor do gabinete.
Levantamento obtido pelo blog mostra que 89 empresas que têm assessores como sócios receberam um total de R$ 9,3 milhões em pagamentos por meio da cota para o exercício do mandato – o “cotão”. Mas o valor pode ser maior porque a pesquisa alcançou apenas os assessores contratados na atual legislatura. Para se ter uma ideia do mercado disponível, só no ano passado o “cotão” pagou despesas no valor de R$ 190 milhões.
O estudo também mostra que deputados pagaram um total de R$ 2,6 milhões para empresas de outros deputados, como consultorias, postos de combustíveis, empresas de comunicação.
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O cruzamento de dados dos parlamentares e assessores com notas fiscais mostra um sistema de controle frouxo. O levantamento apurou que 253 deputados informaram o número do próprio CPF no lugar do CNPJ de empresas prestadoras de serviços para os seus gabinetes. Essas despesas somaram R$ 731 mil.
Na prestação de contas dos gastos com o “cotão”, os deputados são reembolsados depois que apresentam a nota fiscal ou recibo das empresas. Como comprovante de quitação da despesa junto à empresa prestadora de serviços são aceitos comprovantes bancários, carimbo da empresa na nota fiscal ou simples recibos. A Câmara informa que a área técnica responsável “verifica apenas a regularidade fiscal e contábil dos comprovantes de gastos apresentados”.
“Aqui ele é motorista”
Depois de encontrar a sede da Harue Locadora de Veículos fechada, o blog telefonou para o assessor Antônio de Oliveira e tentou alugar um carro. Em viagem ao Ceará, o motorista do gabinete do deputado Alex Canziani (PTB-PR) indicou um amigo para mostrar um carro da empresa, estacionado na garagem de um prédio no Setor de Indústrias Gráficas. O amigo mostrou um Corolla, mas informou que eles trabalham mais com terceirização de locação.
A reportagem telefonou para o gabinete de Canziani e informou que Antônio aluga carros para vários deputados. “Para nós, ele não faz isso. Para nós, ele é motorista. Ele é nosso funcionário e trabalha normalmente, cumpre horário”, afirmou a chefe de gabinete. Informada de que o motorista já faturou R$ 1,6 milhão com a locadora, comentou: “eu sei que de fato ele tem uma empresa há bastante tempo. Eventualmente, ele loca um veículo ou outro para outros parlamentares”.
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O salário de Antônio no gabinete é um mistério. Era de R$ 7 mil em dezembro de 2012. Em dezembro de 2014, caiu para R$ 1,4 mil. Subiu para R$ 8,3 mil em dezembro de 2016. Atualmente, está em R$ 3,3 mil.
Antônio tentou, inicialmente, negar que seja dono da empresa: “Não é eu, é a minha esposa. Eu tenho 1% da empresa”. Mas logo passou a falar como proprietário. “A gente pode conversar dia 25. Estou mudando o meu escritório. Eu poderia mostrar os contratos que eu tenho com os deputados, trabalho para vários deputados. Na empresa, tenho dois carros, dois Corolla. Eu mudei o endereço da minha locadora, transferi para a 502 Sul”.
A assessoria de Canziani enviou nota afirmando que os servidores do seu gabinete “exercem o trabalho para os quais são empossados e cumprem com suas obrigações de expediente e função, inclusive Antônio Alves de Oliveira, contratado como motorista. O parlamentar exige o pleno cumprimento das obrigações legais por parte da equipe e desconhece trâmites internos ou as atividades realizadas por tal empresa. Ressaltamos, também, que o deputado nunca firmou contrato com a locadora”.
Locadora sem empregados, sem carros
Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) julgada no ano passado analisou empresas suspeitas de fraudes na locação de veículos. O ex-deputado Henrique Eduardo Alves, ex-presidente da Câmara, alugou veículos das empresas Executiva e Global Transportes, de abril de 2009 a novembro de 2012, no valor total de R$ 357 mil.
A Global foi aberta em novembro de 2011, no mesmo endereço da Executiva, apenas para substituir essa empresa e dar continuidade às locações. Além dessas, não foi localizada outra contratação pública dessas locadoras, nem qualquer tipo de divulgação ou material relativo a elas na internet ou guias telefônicos.
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Também não foram encontrados registros de empregados dessas empresas, de recolhimentos à Previdência Social e no Registro Nacional de Veículos Automotores. “No contexto, resta estranha a ausência de atividade comercial rotineira e a emissão de notas fiscais praticamente sequenciais ao deputado, do número 1 até 23 e, no caso da Executiva, apenas com pequenos intervalos”, diz o relatório.
Os auditores também apuraram que praticamente não houve abastecimento de combustível no Distrito Federal no período de maio de 2009 a janeiro de 2015, quando o deputado encerrou seu mandato na Câmara dos Deputados.
Naquele período, o deputado gastou com combustíveis R$ 223 mil, sendo R$ 214 mil em notas fiscais emitidas pelo Posto Jacutinga, de Natal (RN), e apenas R$ 9,4 mil com postos localizados em Brasília ou entorno, cujos valores de abastecimentos são pequenos e não coincidem com os meses de locação dos veículos.
Diante dos fatos, o relatório dos auditores concluiu: “assim, há dúvidas se os automóveis foram efetivamente fornecidos ao parlamentar, e se esse fez, de fato, seu uso nos termos autorizados pelos atos de mesas da casa legislativa. Todavia, tal fato é de difícil averiguação por sua própria natureza e em vista da documentação disponível”.
Irregularidades conhecidas
O relatório acrescentou que a utilização de recursos do “cotão” para a locação de automóveis com empresas “supostamente inexistentes, que não seriam do ramo de negócio ou com indícios de estarem sendo adquiridos veículos novos”, foi constatada fortemente em processo de 2016 que apreciou representação por supostas irregularidades cometidas por deputados federais e senadores e determinou providências à Câmara e ao Senado.
Naquele processo, constatou-se que parte das empresas geralmente contratadas por parlamentares não possuíam qualquer tipo de divulgação mercantil, prestavam serviços apenas para determinado parlamentar ou parlamentares, foram constituídas em data próxima a início de mandatos, somente emitiram documentos fiscais após terem sido contratadas pelos legisladores, emitiram notas fiscais, comprovantes ou recibos com numerações praticamente sequenciais e, em se tratando de locadoras de veículos, não detinham automóveis cadastrados em sua propriedade.
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O relatório concluiu que “os vários afrouxamentos procedimentais têm possibilitado usos indevidos ou abusivos das cotas, facilidades para o desperdício de recursos, e atentado ao sentimento de justeza que deve nortear o serviço público”. Foi proposto que os fatos fossem informados ao Conselho de Ética da Câmara.
Mas o plenário do TCU, em 11 de julho do ano passado, decidiu apenas encaminhar à Câmara dos Deputados cópia do processo para “adoção dos procedimentos de apuração previstos nos respectivos normativos internos, comunicando o tribunal sobre as medidas adotadas no prazo de 180”.
Advogado pessoal
O deputado Fernando Giacobo (PR-PR) contratou, em momentos diferentes, três escritórios de advocacia. Duas delas têm um sócio em comum, André Vinicius Beck Lima, que é advogado pessoal do parlamentar. As três empresas informam o mesmo endereço. Elas faturaram R$ 284 mil elaborando pareceres e projetos de lei. Mas, por ser o 1º secretário da Câmara, o deputado não relata projetos nem participa de qualquer comissão. Ele não apresentou nenhum projeto em 2016 e 2018, e somente um em 2017.
Procurada, a assessoria do deputado afirmou que a contratação de empresas pelo seu gabinete está de acordo com as normas da casa. Acrescentou que André Beck Lima possui contrato particular para advogar para o deputado, sendo pago com recursos próprios, sem ressarcimento pela Câmara.
Marco Antônio Borba é secretário parlamentar no gabinete do deputado Sérgio Moraes (PTB-RS). O assessor é também sócio da empresa Borba, Valentini e Konzen Advogados, que prestou serviços ao deputado desde 2009, no valor total de R$ 645 mil. As notas fiscais registram honorários advocatícios referentes a consultoria na análise de projetos de lei. As notas não são sequenciais, mas a empresa não presta serviços a outros deputados. O blog não conseguiu contato com o deputado.
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O deputado Alfredo Nascimento (PR-AM) contratou a empresa Castro Marketing Direto para fazer sua divulgação parlamentar, prestando serviços de assessoria de imprensa e atendimento de redes sociais. Neste mandato, a empresa faturou R$ 477 mil. Um dos seus sócios, Victor Dantas de Castro, é também secretário parlamentar de Nascimento. Procurado, o deputado não se manifestou sobre o caso.
Agora eleito senador, o deputado Major Olímpio (PSL-SP) contratou a Ipom – Consultoria para fazer a sua comunicação nas redes sociais. A empresa pertence a Elaine Cassinelli, que trabalhava no seu gabinete durante a duração do contrato. Elaine conta por que a empresa foi contratada: “A gente precisava fazer layout, panfletos, e eu não fazia, mas tinha gente na minha empresa que fazia. Por isso, eu prestava esse serviço para ele. Eu pagava os meninos da empresa. Eles faziam muito mais em conta do que todos os orçamentos que a gente tinha visto”.
Câmara verifica apenas a regularidade fiscal e contábil
A Câmara dos Deputados foi questionada sobre a legalidade da contratação de empresas que têm secretários parlamentares como sócios. Em nota, a Câmara respondeu que observa, na contratação de todos os servidores, o que determina a Lei 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.
“Dessa forma, ao tomar posse, o secretário parlamentar assina um documento no qual declara não participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não, não exercer o comércio (exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário), nem ser proprietário de firma individual”, diz a nota.
Em relação a pedidos de reembolso relativos à Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar, a Câmara afirmou que “a área técnica responsável verifica apenas a regularidade fiscal e contábil dos comprovantes de gastos apresentados. No formulário de solicitação de reembolso, o deputado atesta a compatibilidade do objeto do gasto com a legislação, a autenticidade da documentação e o recebimento do material ou a prestação do serviço”.
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Como a reportagem investigava a possibilidade de fraude em assinatura de recibos, a Câmara foi questionada se apenas assinaturas comprovam a quitação das despesas. A resposta mostra a fragilidade do sistema. “O setor responsável pela gestão da Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar processa, em média, 1.000 documentos comprobatórios de despesa por dia. Identificar quem ou quantas são as pessoas na empresa aptas a assinar o recibo não é usual, até mesmo porque a empresa, muitas vezes, não coloca uma assinatura, mas um carimbo atestando que o serviço foi pago. O recibo de pagamento é necessário quando a nota fiscal eletrônica apresentada não traz informação sobre a quitação da despesa”.
O blog perguntou se o deputado não precisa comprovar, com cópia de depósito bancário, por exemplo, que a empresa prestadora do serviço efetivamente recebeu o dinheiro que foi reembolsado para o parlamentar.
A Câmara respondeu que, na análise da solicitação de reembolso, é exigida a nota fiscal (regra), a fatura ou o recibo: “No caso de apresentação de nota fiscal e fatura, é necessário anexar também o comprovante de quitação da despesa junto à empresa prestadora de serviços ou à fornecedora de produto. São aceitos recibo, comprovante de depósito bancário, canhoto de cartão, carimbo na nota fiscal ou a descrição da quitação no próprio documento, como no caso de notas fiscais e cupons eletrônicos que discriminam, em um dos campos de preenchimento, a forma de pagamento”.
Uso de CPFs de deputados
A Câmara foi questionada sobre o uso do CPF dos próprios deputados no lugar do CNPJ das prestadoras de serviço. A Câmara admitiu que o sistema eletrônico existente para controle da cota parlamentar de 2009 a 2012 “possibilitava a inserção de um CPF no campo que deveria ser preenchido com o CNPJ da empresa contratada. Bastava que fosse um número válido. Diante da identificação de um volume significativo de registros nos quais a razão social da empresa está vinculada ao CPF do deputado, constata-se que essa imprecisão confundia os operadores do sistema nos gabinetes”.
Segundo a Câmara, os documentos de cobrança apresentados no processo de solicitação de reembolso da despesa evidenciam que, embora tenham sido inseridos números de CPF de parlamentares no campo destinado ao CNPJ da empresa, os prestadores de serviço eram pessoas jurídicas. “Nos casos em questão, os deputados eram apenas os tomadores do serviço prestado ou os beneficiários do produto fornecido. A despeito dos erros formais identificados, os reembolsos das despesas foram regularmente computados nas cotas dos parlamentares”.
“A partir de 2013, foi implantado o sistema CotasNet, que aprimorou o controle da cota parlamentar. Nesse sistema, o campo CNPJ/CPF se ajusta automaticamente ao tipo de fornecedor selecionado, de modo a impossibilitar a vinculação de um CPF a uma pessoa jurídica, por exemplo”, conclui a nota.
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