“Figueiredo. Peço que o SNI examine, a fim de que se possa concluir sobre o que fazer”. Nesse tom informal, num bilhete escrito à mão, em 18 de junho de 1975, o então presidente da República, general Ernesto Geisel, determinou que o Serviço Nacional de Informação analisasse uma investigação sobre o sócio majoritário da Editora Abril, Victor Civita, e o diretor da revista Veja na época, Mino Carta. A tarefa foi entregue diretamente ao ministro chefe do SNI, o general João Batista Figueiredo, que mais tarde sucederia Geisel na Presidência.
Sigilosa, a investigação oficialmente era sobre a nacionalidade de Civita e Mino – ambos eram naturalizados brasileiros. Mas o que mais assombrava os generais da ditadura eram as duras críticas da revista ao regime militar e a suposta infiltração de jornalistas de “notória tendência comunista” na redação. O objetivo final era afastar Civita do controle da Abril.
A troca de ofícios e bilhetes revela como operavam os líderes da ditatura. No mesmo dia em que Geisel determinou a ação de Figueiredo, o ministro da Justiça, Armando Falcão, registrou, igualmente em documento manuscrito, a audiência que teve com o presidente Geisel.
“Despacho com o presidente (confidencial). Passo às mãos do sr. presidente resumo do relatório sobre investigação sigilosa a que mandei proceder, conforme recomendação verbal de S. Excia. acerca de Victor Civita e Demétrio (Mino) Carta, da Editora Abril (revista “Veja”). Os três alentados volumes da investigação estão em meu poder e serão encaminhados ao Sr. Presidente, se decidir examiná-los pessoalmente”.
No dia seguinte, entrou em ação o chefe de gabinete do SNI, coronel Newton Cruz. Ele enviou ofício ao secretário particular de Armando Falcão para registrar a entrega dos três volumes da investigação: “Peço-lhe para entregar ao portador os três volumes referentes à investigação sigilosa sobre Victor Civita e Demétrio (Mino) Carta”.
Os documentos, com o carimbo “confidencial”, foram registrados na Agência Central do Serviço Nacional de Informação (SNI) no dia 20 de junho de 1975. No pé da página, há o seguinte despacho: “Nos termos da recomendação do Exmº presidente da República, examinar, urgentemente, a documentação anexa, concluindo pelas possíveis linhas de ação a serem adotadas pelo governo, e respectivas vantagens e desvantagens”.
O Serviço Nacional de Informações foi um dos órgãos estatais mais atuantes durante a ditadura militar. Era responsável por monitorar atividades consideradas subversivas em empresas, sindicatos, universidades e no próprio governo, reunindo informações e organizando contrainformações no Brasil e no exterior.
A infiltração comunista
O relatório sigiloso apontava discrepâncias quanto à nacionalidade originária do empresário, que fora naturalizado brasileiro em 24 de agosto de 1960. Os arapongas apuraram que Civita nasceu em Nova York, em 9 de fevereiro de 1907. Teria ido para a Itália com dois anos de idade e mais tarde retornado aos Estados Unidos, onde se naturalizou cidadão norte-americano. Desembarcou no Rio de Janeiro em 9 de setembro de 1949, então com 42 anos.
LEIA TAMBÉM: Espiões da ditadura agiram para modificar Constituição de 1988
Mas essa parecia ser apenas uma desculpa para uma possível ação contra o empresário – acionista majoritário da Abril, que editava 40 títulos de revistas e incontáveis fascículos com 150 diferentes edições. Os documentos do SNI registram que Civita estaria se omitindo à frente do seu império de comunicação e “consentindo que se infiltrem, instalem e permaneçam atuando dentro dele adeptos da teoria marxista-leninista, elementos esquerdistas e de notória tendência comunista”. O empresário não estaria dando importância às advertências e recomendações recebidas.
Civita estaria permitindo que o seu “poderoso veículo de comunicação” publicasse “artigos fazendo a apologia do crime, capazes de sugerir a prática de atos delituosos, de ofender o decoro público, de induzir aos maus costumes, de ferir a dignidade ou o interesse nacional – a par de publicações outras que poderão diminuir o prestígio e a dignidade do Brasil no exterior, a sua cultura e suas tradições”.
LEIA TAMBÉM: A inacreditável história do general-presidente que adotou a neta para deixar pensão militar
Civita ainda teria sido detido, em junho de 1970, por autoridades militares em São Paulo, em consequência da reportagem publicada pela Veja com o título “A nova face do terror”, que estampou, inclusive, carta do ex-capitão Lamarca.
Críticas aos poderes constituídos
O perfil profissional e político de Mino Carta também é traçado nos documentos sigilosos: “É um dos principais responsáveis pela linha francamente contestatória da revista Veja, de aberto desafio à Censura Federal e acerbas críticas ao governo e aos poderes constituídos, através de artigos, reportagens, glosas subliminares e o emprego de linguagem simbólica, deformando fatos, escamoteando dados”.
Segundo o dossiê da ditadura, Mino nasceu em Gênova, Itália, em 6 de setembro de 1933. Chegou ao Rio de Janeiro em companhia de sua mãe e de um irmão, em agosto de 1946. Foi naturalizado em agosto de 1964. O seu processo de naturalização apresentaria irregularidades, como o fato de responder a uma ação penal quando obteve a cidadania brasileira.
LEIA TAMBÉM: Se for presidente, Bolsonaro vai mexer na pensão das filhas solteiras?
Mino participou da criação da revista Veja, onde ocupou o cargo de diretor de redação até 1976. Em seguida, lançou a revista IstoÉ e o Jornal da República. Deixou a IstoÉ em agosto de 1993. Um ano mais tarde, fundou a revista Carta Capital, que dirige até hoje.
A conclusão do dossiê
O relatório da Polícia Federal sustentou que a constatação do crime de falsidade ideológica permitiria a anulação da cidadania brasileira de Civita e Mino Carta. O documento também acusava os dois de transgressão da lei que regulava a liberdade de manifestação do pensamento e o abuso no exercício dessa liberdade. Mas o principal argumento era que a Veja estaria sob o controle de naturalizados, o que afrontava o artigo 174 da Constituição Federal, que vedava a estrangeiros a propriedade e a administração de empresas nacionais.
Mas a questão já havia sido examinada pela Justiça do Estado de São Paulo, que entendera descabida a dissolução da Editora Abril, pedida pelo Ministério Público. A Justiça ponderou que a petição inicial não havia declarado qual seria a ilicitude ou imoralidade da atuação da editora.
Como Civita continuou no comando da Editora Abril durante o período da ditadura militar, o mais provável é que, após analisar as “vantagens e desvantagens” de uma ação do governo contra o empresário, Geisel tenha decidido deixar tudo como estava. Os militares preparavam a abertura democrática. Um ano depois daquele bilhete, Mino Carta deixou, a contragosto, a revista Veja.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS