No pronunciamento em que rebateu acusações do ex-ministro Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro disse que tomou medidas de economia no Palácio da Alvorada e que um cartão corporativo que está à sua disposição nunca foi usado. Dados do Portal da Transparência mostram que as despesas sigilosas de Bolsonaro com cartões aumentaram 34% em relação ao antecessor Michel Temer e 12% na comparação com o último ano de Dilma Rousseff como presidente.
No primeiro ano de mandato, as despesas de Bolsonaro somaram R$ 7,5 milhões — 98% dos gastos são protegidos por sigilo. Temer gastou R$ 5,6 milhões em 2018 (último ano de mandato) e Dilma teve despesas de R$ 6,7 milhões em 2015 (último ano cheio do governo dela). Todos os valores foram atualizados pela inflação do período. Como as despesas pagas em janeiro de 2019 foram feitas em dezembro de 2018, no governo Temer, elas não foram incluídas nas despesas de Bolsonaro com cartão corporativo. Estas, por sua vez, consideram também os gastos efetuados em janeiro de 2020 para fechar 12 meses e permitir a comparação.
Os relatórios do Portal da Transparência revelam que, em 2019, as despesas começaram modestas no governo Bolsonaro. Ficaram em R$ 364 mil em março e R$ 422 mil em abril, mas depois foram crescendo, até chegar a R$ 830 mil em novembro e R$ 970 mil em dezembro. As maiores despesas acontecem em viagens nacionais ou internacionais, principalmente com hotel e restaurante para os assessores e dezenas de seguranças, como mostram os gastos de ex-presidentes.
Compras sem limite
O limite de compras para despesas de caráter excepcional, pagas com os cartões corporativos, é de R$ 17,6 mil. Porém, para as atividades da Presidência da República, esse valor pode ser superado. Entre as despesas sigilosas de Bolsonaro, 108 superaram os R$ 17,6 mil. Quatorze pagamentos ficaram acima de R$ 50 mil. O maior deles alcançou R$ 97,6 mil.
No caso de Temer, apenas 46 compras superaram os R$ 17,6 mil. Cinco ficaram acima de R$ 50 mil. Mas o teto foi mais elevado – R$ 109 mil. Os números foram semelhantes no governo Dilma, em 2015. O limite foi superado em 51 casos. Sete ficaram acima de R$ 50 mil e o teto ficou em R$ 70 mil.
O percentual de gastos sob sigilo da Secretaria de Administração continua estável nos três anos analisados. Estava em 98,5% em 2015. Caiu para 97,9% em 2018 e chegou a 98,3% no ano passado. São considerados sigilosos os gastos relacionados às atividades do presidente e do vice-presidente da República e à segurança dos familiares dessas autoridades.
Milhões em salários extras e auxílio-moradia
Bolsonaro afirmou no dia 24 de abril ter “preocupação com a coisa pública” e que busca “dar exemplo”. Disse ainda que, nos últimos dois anos como deputado, gastou metade da cota parlamentar, que paga passagens aéreas, combustível, alimentação, aluguel. Mas não contou que, de 1995 a 2018, recebeu R$ 1,8 milhão em salários extras e R$ 2,4 milhões de auxílio-moradia, como mostrou o blog em março do ano passado. Em 10 anos, usou R$ 4 milhões da cota parlamentar. Ou seja, sempre usufruiu das mordomias e privilégios parlamentares.
No pronunciamento, Bolsonaro finalmente reconheceu que, além do seu cartão pessoal "zerado", há mais dois cartões corporativos usados para “despesas as mais variadas, afinal, mais de 100 pessoas estão na minha segurança diariamente. Despesa normal de casa”. Mas contou que desligou o aquecedor da piscina olímpica e modificou o cardápio do Palácio da Alvorada. “É obrigação da minha parte”, afirmou.
Esses “dois cartões” citados pelo presidente são usados por servidores da Secretaria de Administração da Presidência. Pagam todos os custos de viagens, do Alvorada, e despesas pessoais do presidente e dos seus familiares. Estão sob sigilo absoluto. Não se sabe o que compram nem de quem, mas o Portal da Transparência da Presidência mostra os valores pagos.
Presidente não cumpre promessa de quebrar sigilo
O presidente chegou a anunciar que mostraria o extrato do seu cartão corporativo em agosto do ano passado. No pronunciamento do dia 24, se gabou da suposta economia ao falar do seu cartão pessoal: “Eu posso sacar R$ 24 mil e gastar no que eu bem entender, sem prestação de contas. Quanto eu usei dessa verba desde janeiro do ano passado? Zero. Isso é obrigação”. Mas o presidente não cogitou quebrar o sigilo das despesas com supermercado, açougue, hospedagem e alimentação nas viagens, pagas com os outros dois cartões.
As despesas do presidente e dos seus familiares, pagas com cartão corporativo, ficam em sigilo até o final do mandato, como está previsto na Lei de Acesso à Informação. Mas o blog conseguiu acesso aos gastos da família Bolsonaro quando ele estava hospedado na Granja do Torto, após a eleição de 2018 e antes da sua posse como presidente. As despesas entraram na prestação de contas de Temer, que ainda era presidente.
A maior parte dos gastos foi feita com almoços e jantares para o presidente e a sua equipe de transição, no Torto e no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Em 19 de dezembro, foi servido jantar para 40 pessoas na residência oficial do presidente eleito. Mas também houve compra de picanha, filé mignon e filé de salmão para atender a cozinha da residência oficial. Houve até “chá de panela” pago com dinheiro público.
A mesa era farta e os pratos sofisticados, mas não chegou a haver os exageros dos governos Lula e Dilma no cartão corporativo, como a compra de cachaça Havana a R$ 400 a garrafa para o líder petista e aluguel de lancha por R$ 30 mil para o réveillon de 2011 da ex-presidente com a família, na Base Naval de Aratu, em Salvador (BA).
Auxílio-mudança sem mudança
Os salários extras que Bolsonaro recebeu, junto com os demais deputados, eram as “ajudas de custo” pagas no início e no final do ano, supostamente para cobrir despesas de transporte. Quando havia convocação extraordinária do Congresso Nacional, em janeiro ou julho, os deputados e senadores recebiam mais dois salários extras em apenas um mês. Bolsonaro chegou a receber seis ajudas de custo em 1996 e em 1997, sem contar o 13º salário. Em 24 anos, recebeu 62 salários extras.
A partir de 2013, a “ajuda de custo” passou a ser paga apenas no início e no final do mandato, a cada quatro anos, para cobrir despesas com transporte e mudança. Passou a ser chamada de “auxílio-mudança”, mas para os parlamentares reeleitos – o caso de Bolsonaro – não havia mudança. Ainda assim, recebiam a ajuda. Além disso, todos os parlamentares recebem apartamento funcional mobiliado ou moram em hotéis. Não há mudança.
Auxílio para “comer gente”
Bolsonaro recebeu um total de 271 parcelas de auxílio-moradia durante 22 anos e meio. São R$ 2,35 milhões em valores atualizados pela inflação. Apenas em abril de 2018 ele deixou de receber o auxílio-moradia, optando por morar em apartamento funcional. Isso aconteceu depois que a Folha de S. Paulo descobriu, em janeiro, que Bolsonaro recebia auxílio-moradia mesmo tendo apartamento próprio em Brasília desde janeiro de 2001. Considerando os pagamentos feitos ao deputado pelo auxílio-moradia desde aquela data, são R$ 1,7 milhão em valores atualizados. O repórter da Folha perguntou para que servia o auxílio, já que ele tinha imóvel próprio. “Para comer gente”, respondeu.
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