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No plano de governo apresentado em 2018, como candidato a presidente, Jair Bolsonaro prometeu o corte de privilégios no serviço público. Passados quase dois anos, o presidente não se empenhou na aprovação de projetos de lei que cortam mordomias como férias de 60 dias para juízes e promotores, salários acima do teto constitucional e benefícios como carros oficiais e assessores para ex-presidentes da República. Além disso, ainda criou novas regalias para militares.
O diagnóstico da administração pública brasileira estava no caminho certo. No item “Eficiência do Estado e Controle de Gastos”, o plano de governo de Bolsonaro dizia que a administração pública “inchou de maneira descontrolada nos últimos anos. Houve uma multiplicação de cargos, benefícios e transferências sem comparação em nossa história. Como resultado, vemos um setor público lento, aparelhado, ineficiente e repleto de desperdícios”.
O remédio receitado era superficial, genérico, cheio de frases feitas, mas apontava o fim dos privilégios: “Podemos fazer mais com muito menos, partindo de um movimento de gestão pública moderna, baseado em técnicas como o ‘Orçamento Base Zero’, além do corte de privilégios”. Na área de segurança, ele reforçava: “Tolerância zero com o crime, com a corrupção e com os privilégios”. Mas o candidato não definiu quais privilégios queria cortar. A palavra aparece apenas duas vezes no seu plano de governo. Não fixou metas, ou não tinha metas.
Quando foi eleito, já havia dois projetos bastante adiantados que resultariam em economia substancial. Só o fim das férias de 60 dias para magistrados, prevista na PEC 435/2018, de autoria do deputado Rubens Bueno (Podemos-PR), resultaria num corte anual de despesas acima de R$ 1 bilhão. A proposta foi arquivada no final da legislatura anterior e desarquivada em fevereiro no ano passado, mas não andou mais.
Pagamentos mensais a magistrados superam R$ 1 milhão, chegando a R$ 8 milhões, devido aos retroativos, venda de férias e outros privilégios, como mostraram reportagens feitas pelo blog nos últimos três anos. A maior parte desses casos acontece nos judiciários e nos ministérios públicos dos estados, como destaca Bueno. “Juízes e promotores têm direito a dois meses de férias e mais dois períodos de recesso. Isso dá três meses de folga por ano. É algo inimaginável para qualquer outro trabalhador brasileiro. Como eles têm três meses de férias, grande parte acaba vendendo um período, o que lhes rende um salário extra", comenta o deputado.
"O presidente não moveu uma palha"
A Comissão Especial do Teto Remuneratório concluiu os seus trabalhos em setembro de 2018, com a apresentação do parecer do relator, novamente o deputado Rubens Bueno, que ampliou as regras para barrar os penduricalhos que fazem com que muitos servidores recebam acima do teto remuneratório constitucional – R$ 39,3 mil.
Mas o PL 6726/2016 não chegou a ir ao plenário em 2018. No ano passado e neste ano, aconteceu apenas a apresentação de requerimentos pedindo a votação da matéria em plenário. Mas nada foi adiante. Bueno não culpa apenas o governo, mas também o lobby de entidades representativas do Judiciário e do Ministério Público, que segundo ele vem barrando a votação do projeto no plenário da Câmara. Em abril, houve uma fracassada tentativa de votação de um requerimento de urgência para a votação da matéria.
Nem mesmo o Executivo, envolto numa interminável busca de recursos para o chamado Renda Brasil, quer se envolver nesse tema. "O presidente Jair Bolsonaro não moveu, até agora, uma palha para ajudar na aprovação desse projeto na Câmara", reclama o relator.
O projeto extrateto diz que é crime excluir ou autorizar a exclusão dos limites remuneratórios de forma que não atenda o disposto na lei. A pena para o agente público que cometer esse crime é de detenção de dois a seis anos. O projeto também submete ao teto salarial dos servidores o auxílio moradia, honorários de sucumbência, venda de férias acima de 30 dias e jetons pagos pelos conselhos de empresas estatais. Ficariam fora do abate-teto: auxílio alimentação, auxílio transporte, hora extra, auxílio creche, adicional noturno, auxílio funeral e férias, entre outros pontos.
As mordomias dos ex-presidentes
Pelo menos 15 projetos que tramitam na Câmara dos Deputados eliminam totalmente ou cortam parte dos benefícios e mordomias oferecidos aos ex-presidentes da República. Eles têm direito a oito servidores federais, incluindo seguranças, motoristas e assessores, além de carros oficiais, gasolina, diárias e passagens para servidores e até cartão corporativo, tudo pago pelo contribuinte.
Como mostrou reportagem do blog, essas regalias já custaram R$ 60 milhões aos cofres públicos. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, continuou recebendo todos os benefícios, inclusive seguranças e motoristas, mesmo durante a sua prisão em Curitiba, quando estava muito seguro e sem qualquer mobilidade. Os gastos daquele período de quase um ano chegaram a R$ 1 milhão.
O PL 9895/2018, apresentado em março de 2018, é de autoria dos deputados Jair Bolsonaro (PSL-RJ) e Delegado Francischini (SD-PR). Os dois parlamentares destacaram que os cinco ex-presidentes (hoje são seis), somados, tinham um custo de R$ 5 milhões por ano, distribuídos em 40 funcionários e 10 veículos oficiais. “Vale destacar, ainda, que dois ex-presidentes tiveram seus mandatos cassados e ainda assim dispõem dessas regalias. Em um momento de crise financeira, quando se exige esforço da sociedade e do governo para reequilibrar as contas públicas, não é cabível a existência de uma legislação ultrapassada, a qual inclusive tem sido copiada por governos estaduais e municipais”, diz a justificativa do projeto.
Depois de eleito, Bolsonaro nunca mais tocou no assunto publicamente. O seu projeto e os outros 14 foram entregues à relatora na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ), a deputada Caroline de Toni (PSL-SC), nomeada em maio do ano passado. Aliada do presidente, ela apresentou parecer em agosto daquele ano, aprovando o PL 9895/2018 e rejeitando os demais . Em dezembro, o projeto foi retirado de pauta na CCJ. Em 23 de janeiro deste ano, foi devolvido à relatora, e mais nada aconteceu.
A deputada consultou um assessor do presidente sobre o projeto. Foi informada de que Bolsonaro mantém o seu apoio à proposta, mas o assessor do presidente sugeriu à relatora que sejam mantidos pelo menos dois seguranças, por tempo determinado, para ex-presidentes ameaçados de morte. “Ele é totalmente favorável que a lei seja revogada, mas, depois que ele sofreu a facada, fica complicado se não mantiver pelo menos os dois seguranças no caso de ameaça de morte”, comentou o assessor. A assessoria da deputada afirma que o projeto não andou neste ano por causa da pandemia da Covid-19.
Em 24 de agosto, há dois meses, o blog informou ao líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), que estava fazendo reportagem sobre o corte de privilégios no serviço público e perguntou qual a posição do governo sobre esse tema. Até hoje não houve resposta. O mesmo questionamento foi encaminhado ao líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) – igualmente sem obter resposta.
Mais privilégios para militares
Além de não cortar privilégios, o presidente Jair Bolsonaro também concedeu novas regalias aos militares, categoria que defendeu como “sindicalista” durante os 28 anos como deputado federal. Na reforma da Previdência aprovada em 2019 – muito dura com servidores públicos civis e trabalhadores em geral – membros das Forças Armadas tiveram privilégios mantidos e ainda receberam novas vantagens no plano de reestruturação da carreira militar e do sistema de proteção social, previstas no projeto de lei 1.645/2019.
Entre as regalias dos militares estão a não exigência de idade mínima, reajuste igual ao de militar da ativa (paridade), pensão integral, pensões vitalícias para filhas maiores de idade, adicionais ao salário, ajuda de custo maior no momento da aposentadoria e pensão para família de militar que cometeu crimes.
Um antigo privilégio foi mantido: militar não precisa pagar contribuição previdenciária para financiar a própria "aposentadoria". A remuneração dos militares ativos e inativos é encargo financeiro do Tesouro Nacional. Os militares não estão enquadrados em nenhum regime de Previdência. Assim, quem banca a remuneração dos militares da reserva ou reformados são os contribuintes.
Entre as novas regalias, estão dois adicionais bastante generosos: de “habilitação” e de “disponibilidade”. O primeiro resultará da realização de cursos de especialização e aperfeiçoamento. O adicional poderá chegar a 73% do soldo, a partir de junho de 2023, no caso de generais e coronéis.
O segundo adicional resulta da “disponibilidade permanente e à dedicação exclusiva”, e será de 41% para generais a partir de janeiro de 2020. Mas os percentuais dos dois novos adicionais diminuem à medida que cai o posto militar. No caso de terceiro sargento, praticamente não haverá aumento. Os maiores beneficiados serão oficiais subalternos, oficiais superiores e oficiais generais.
Entre as vantagens para compensar supostas perdas da reforma previdenciária, está o aumento da ajuda de custo na transferência para a inatividade remunerada, ou seja, a "aposentadoria". Paga em parcela única, o bônus passa de quatro para oito vezes o valor da remuneração para oficiais e praças.
Tolerância zero com a corrupção?
Como citamos no início, o plano de governo de Bolsonaro previa “tolerância zero com o crime, com a corrupção e com os privilégios”. Mas o presidente da República não mobiliza esforços de sua base no Congresso para fazer a prisão em segunda instância avançar. Desde a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, o Executivo federal não tem um defensor claro desta pauta, como mostra reportagem de Rodolfo Costa publicada na Gazeta do Povo no dia 1º deste mês.
A reportagem informa que, na Câmara, a proposta de emenda à Constituição (PEC) 199/2019 perdeu fôlego e não saiu nem da comissão especial criada para tratar do assunto. No Senado, o projeto de lei (PLS) 166/2018 está engavetado à espera de ser pautado para votação no plenário. “A aprovação de uma lei que permita a prisão após condenação em segunda instância está cada vez mais distante. O atual cenário é desanimador”, diz a reportagem.
Mais uma vez, a responsabilidade não é apenas do presidente Bolsonaro. Também falta vontade política dos congressistas – sobretudo dos líderes partidários, que têm mais poder para pressionar os presidentes das duas casas a colocar essa matéria em votação. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), não deram prioridade aos projetos que tratam da condenação em segunda instância.