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Com investimentos de R$ 2 bilhões do governo federal e atraso de 13 anos na construção da sua fábrica de hemoderivados, a Hemobrás enfrentou mais um obstáculo em 2020: a Covid-19. Com o cenário econômico decorrente da pandemia, a desvalorização do real gerou o acréscimo do passivo da Hemobrás, com dívidas contraídas em dólar. A estatal fechou o ano com dívida bruta de R$ 825 milhões – um crescimento de 30% em relação a 2019.
Em 31 de dezembro de 2020, a Hemobrás possuía passivos em moeda estrangeira não protegidos por mecanismos de hedge accounting. Esse passivo foi gerado de 2013 a 2015, quando houve um desentendimento nos contratos entre o Ministério da Saúde e a Hemobrás, que acumulou um prejuízo de 200 milhões de dólares. Para evitar novos riscos, a Hemobrás pretende agora contratar proteção cambial.
No relatório da diretoria de 2020, a estatal informa que, “no intuito de mitigar possíveis riscos cambiais para o próximo exercício”, a Hemobrás tinha a expectativa de, até o início de 2021, contratar proteção cambial, considerando o câmbio definido no contrato com o Ministério da Saúde para o referido exercício.
Em 2015, os negócios da companhia já haviam sido impactados pela variação cambial, o que colaborou para o aumento significativo do prejuízo ao final do exercício. Aquele cenário desfavorável resultou no crescimento do passivo com os dois principais fornecedores: o Laboratório Francês de Biotecnologia (LFB) e a multinacional Baxter. A dívida em moeda estrangeira está hoje em R$ 551 milhões.
A Hemobrás foi questionada pelo blog nesta semana por que, ainda em 2020, possuía passivos em moeda estrangeira não protegidos por mecanismos de hedge accounting. A estatal respondeu que a proteção cambial para longo prazo, “em todos os mecanismos existentes e permitidos para uma empresa estatal, demanda custos muito elevados. No ano de 2020, com a pandemia e as incertezas por ela geradas, os custos das operações de proteção cambial tiveram um impacto considerável e são consideradas inviáveis e desaconselhadas. Atualmente, a Hemobrás protegeu 25% do passivo em moeda estrangeira, que corresponde ao compromisso de pagamento para 2021”.
Histórico de previsões frustradas
Criada em dezembro de 2004, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, para fugir à dependência de grandes multinacionais que tinham o controle do mercado de hemoderivados, a Hemobrás errou feio nas suas previsões. No final de 2005, a sua diretoria estimou o início da produção da sua fábrica em Goiana (PE) num prazo de 36 meses. O retorno do investimento, calculado em 65 milhões de dólares, se daria em três anos após o início do funcionamento. Com o dólar a R$ 2,33, eram R$ 152 milhões. Com a atualização monetária, seriam hoje R$ 347 milhões – uma sexta parte dos R$ 2 bilhões já injetados pelo governo na estatal.
Em 2007, a Hemobrás adquiriu a tecnologia de produção de hemoderivados, como albumina, imunoglobulina e Fator VIII – produzidos pelo fracionamento do plasma humano, a partir das doações de sangue. Entre as metas estabelecidas para 2011, estavam a conclusão do processo de transferência de tecnologia e implantação da fábrica. Em 2009, porém, a estatal teve uma licitação anulada pela Justiça Federal, houve atraso na execução das obras e a nova previsão de conclusão da fábrica ficou para 2014.
A fábrica iniciou a operação de seu primeiro módulo em 2012. Começou a armazenar na sua câmara fria a matéria-prima dos hemoderivados: o plasma sanguíneo. Mas a estatal descobriu que não bastaria a fábrica de hemoderivados. Seria preciso construir também uma fábrica de recombinantes, produzidos por engenharia genética. Foram firmados, então, contratos com a americana Baxter, um para transferência de tecnologia e outro para fabricação e fornecimento de produto.
Os investimentos privados para a construção da fábrica do Fator VIII Recombinante tiveram início em 2019, em conjunto com a empresa Takeda, que vai colocar 250 milhões de dólares no projeto, distribuídos entre os anos de 2019 e 2025.
Dólar alto e fraudes abalam Hemobrás
Em 2013, a fábrica já havia investido R$ 348 milhões e estava orçada em R$ 855 milhões. “A previsão é que as obras civis sejam concluídas em 2015, com o funcionamento operacional iniciando-se em 2017”, dizia o otimista “Relatório de Administração”. No ano seguinte, com os investimentos batendo em R$ 511 milhões, nova estimativa: “A previsão é que a fábrica comece a produzir seu primeiro hemoderivado em 2018”.
O ano de 2015 abalou o otimismo da direção: “O ano foi extremamente desafiador”, registrou o Relatório de Administração. O efeito da variação no valor do dólar e do euro foi sentido no aumento do custo de transporte internacional, no seguro, nas tarifas aeroportuárias, nos tributos de importação, gerando mais déficit na logística dos medicamentos e impactando no resultado das operações.
Mas o pior ainda estava para acontecer. No fim do ano, foi deflagrada a Operação Pulso pela Polícia Federal, que investigou um esquema de fraudes em licitações na empresa. As consequências imediatas foram os afastamentos de dois membros da Diretoria Executiva e um funcionário da estatal. O país vivia a fase final do governo Dilma Rousseff. Durante a operação, maços de notas de real foram jogados peça janela do apartamento do presidente da Hemobrás, Rômulo Maciel Filho, quando o prédio foi cercado pela polícia. Os envolvidos foram denunciados pelo Ministério Público Federal em junho de 2018.
Primeiro ano de lucro
O ano de 2016 foi o primeiro ano em que a Hemobrás apresentou lucro em seu resultado, com valor aproximado de R$ 117 milhões. Desde a sua fundação até 2015, a empresa havia acumulado prejuízo de R$ 682 milhões. Houve renegociação dos contratos com os principais fornecedores, aumento da produtividade e rescisão de contratos, decorrentes de auditorias realizadas a partir da Operação Pulso.
Em dezembro de 2018, a Hemobrás recebeu mais R$ 296 milhões para futuro aumento de capital, possibilitando a aceleração do ritmo dos investimentos. O resultado líquido do exercício só não foi positivo devido, principalmente, à variação cambial, incidente sobre o passivo em moeda estrangeira, motivada pela desvalorização do real frente ao dólar, o que gerou um resultado financeiro negativo de aproximadamente R$ 87 milhões.
A transferência de tecnologia foi paralisada em 2016, em função de atrasos na construção da fábrica, culminando na desmobilização do LFB. Segundo contrato firmado em 2010, ficou acertado que o LFB faria o fracionamento de plasma até que a fábrica estivesse pronta. Mas, em função de restrições sanitárias, a Anvisa determinou a suspensão da importação e distribuição desses medicamentos no território nacional. Em 2019, com a retomada das obras civis, as partes firmaram acerto de contas que prevê a continuação da transferência de tecnologia.
Aportes de capital da União
No “Relato Integrado” de 2020, 16 anos após a sua criação, a Hemobrás citou o investimento total de R$ 1,4 bilhão no projeto. São aportes de capital da União em valores nominais, não atualizados pela inflação. Em valores atualizados, são R$ 2 bilhões. Em funcionamento, a fábrica vai processar 500 mil litros de plasma, o que atende à demanda de 100% de todos os medicamentos.
A estatal informou que foram atingidos 76% de execução das obras civis da fábrica em 31 de dezembro de 2020. “Ocorreram impactos devido à desvalorização cambial frente ao dólar norte-americano e o euro, que colaboraram para o resultado financeiro líquido negativo de aproximadamente R$ 119 milhões”, diz o “relato”, que também citou a dívida bruta de R$ 825 milhões e os investimentos registrados no imobilizado num total de R$ 871 milhões, sendo R$ 142 milhões em edificações da fábrica em Goiana.
A diretoria afirmou que “o aumento do valor da dívida em reais foi motivado pela desvalorização da moeda, no ano de 2020, devido a pandemia provocada pelo coronavírus. Adicionalmente, a pandemia agravou o cenário existente, adicionando maior pressão nos preços dos hemoderivados, principalmente para a Imunoglobulina, motivada pelo aumento da demanda dos sistemas de saúde e as restrições de oferta de plasma devido ao isolamento social”.
Renegociação em sete anos
Ainda sobre o endividamento da empresa, a sua assessoria de imprensa afirmou que a Hemobrás acumulou um prejuízo de 200 milhões de dólares junto ao parceiro de transferência de tecnologia para fornecer Fator VIII recombinante ao Programa Nacional de Coagulopatias Hereditárias. “Mesmo tendo que lidar com uma desavença dessa magnitude não houve desabastecimento do produto. O passivo foi renegociado com o parceiro privado para ser pago em sete anos. Dentro desse acordo o atual parceiro está construindo a fábrica para a produção do medicamento com investimento de 250 milhões de dólares. O passivo atual foi amortizado em 50%. Atualmente as novas operações de câmbio são negociadas ano a ano e estão protegidas”, diz nota da assessoria.
Questionada se a estatal poderia atender outros clientes, além do Ministério da Saúde, a assessoria respondeu que a Hemobrás foi criada para fornecer medicamentos hemoderivados e de biotecnologia ao Sistema Único de Saúde, reduzindo ou anulando a dependência externa desses produtos. “Quando obtidos a partir do plasma brasileiro, os medicamentos resultantes têm que atender prioritariamente ao SUS. Já no contexto da biotecnologia o excedente da produção nacional poderá, em tese, ser comercializado com outros países após a conclusão da transferência de tecnologia”, acrescentou a nota.
A Hemobrás também informou o andamento das obras da fábrica de recombinantes, programada para ser inaugurada em 2025. “Até junho de 2021 foram investidos aproximadamente 20 milhões de dólares na aquisição de equipamentos, desenvolvimento de projetos e obras. Esse valor deve atingir o total de cerca de 55,8 milhões de dólares até o final de 2021. O total de investimentos contratados se encontra em 70 milhões de dólares. A obra da fábrica finaliza em 2023, quando começam as operações e validação farmacêuticas”.
A Hemobrás também foi questionada por que demorou tanto a perceber que precisaria de uma fábrica de recombinantes. “Não se tratou de forma alguma de inércia para essa percepção. Tão logo identificamos a oportunidade, buscamos a incorporação da tecnologia de fabricação do Fator VIII recombinante. As tratativas para a incorporação dessa tecnologia se iniciaram em 2011. Antes desse período, não havia tecnologias disponíveis para transferência”, diz nota da empresa.