Não só de mensalão e de Lava Lato vive o Supremo Tribunal Federal (STF). Além dos grandes escândalos que envolvem políticos e empresários poderosos e bilhões de reais, os chamados “crimes de bagatela” também chegam na mais alta corte do país. Há casos, por exemplo, de roubo de itens como chinelo, galinha, barra de chocolate e até a apreensão de uma nota falsa de R$ 5. No Superior Tribunal de Justiça (STJ) chegam casos de pequenos furtos em dinheiro que variam (acreditem!) de 15 centavos a R$ 7, além do roubo de uma colher de pedreiro avaliada em R$ 4.
Muitos desses crimes são julgados de acordo com o “princípio da insignificância”, que é aplicado a furtos não qualificados, de valor ínfimo e praticados sem violência. A jurisprudência mostra que acusados reincidentes costumam perder esse benefício.
As penas são geralmente pequenas, mas muitas vezes desproporcionais em relação aos valores roubados. Só como comparação, os irmãos Joesley e Wesley Batista, da JBS, que confessaram ter pago mais de R$ 1 bilhão a políticos, sairiam livres se não tivessem omitido informação na delação premiada que fizeram. Há condenações até mesmo para tentativas frustradas de furtos.
O STF e o STJ não determinam as penas – impostas em primeira ou segunda instância. Apenas julgam pedidos de habeas corpus (HCs) ou recursos apresentados pelos acusados, Defensoria Pública ou Ministério Público.
A Gazeta do Povo analisou o julgamento de 150 crimes de bagatela no STF e no STJ (veja relação dos crimes de menor valor no final deste post) e encontrou outros casos envolvendo roubo ou furto de produtos de pequeno valor. São pneus usados, espigas de milho, botijão de gás, shampu, desodorante, azeite, peças de carne, ração para gatos, lata de cola, papelote de cocaína, barra de cereal, bala de goma, chocalho de bebê e bicicleta usada, além de animais como ovelha e cavalo.
Do mensalão à nota falsa
Antes de receber a relatoria do processo do mensalão no Supremo, o ministro Joaquim Barbosa foi relator de um caso bem mais singelo: um pedido de habeas corpus em favor de Rogério Oliveira, que teve a sua prisão preventiva decretada porque foi encontrada em seu cofre uma nota falsa de R$ 5. O recurso já havia sido negado pelo Tribunal de Justiça do Ceará e pelo STJ.
A 2ª Vara de Crateús (CE) havia determinado busca e apreensão na casa de Oliveira, à procura de “substâncias entorpecentes e armas de fogo”. Nada disso foi encontrado pela polícia no dia 22 de junho de 2001, mas foi apreendido um cofre que continha várias cédulas, entre elas a nota falsa. Laudo pericial concluiu que a falsificação era “de péssima qualidade (grosseira)”.
Em novembro de 2003, o ministro Barbosa já havia concedido liminar favorável ao denunciado. No julgamento do habeas, alegou que a cédula falsa não induziria alguém a erro e que “não se verifica a necessária obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio”. Ele recomendou a concessão do HC e o trancamento da ação penal, o que foi decidido pela Segunda Turma do STF, em 16 de março de 2004.
Dois anos por 15 centavos
Em agosto de 2004, o STJ julgou pedido de habeas corpus em favor de Moisés de Souza, que havia sido condenado a dois anos de detenção por ter furtado R$ 0,15 do bolso de uma pessoa caída ao chão, após ter sido agredida por dois desconhecidos. Não se trata de um erro de digitação, são 15 centavos de reais. Na carteira, havia ainda uma cópia xérox da cédula de identidade da vítima. A apelação ao Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo não havia obtido sucesso.
O ministro relator no STJ, Paulo Medina, criticou os termos da decisão do Tribunal de Alçada: “Causa espécie a forma afrontosa dos fundamentos expedidos pelo colegiado”. E citou trechos do acórdão, como este: “Curioso e repugnante paradoxo: essa turma da bagatela, da insignificância, essa malta do Direito Penal sem metafísica e sem ética, preocupa-se em afetar deplorativa solidariedade aos miseráveis; no entanto, proclama ser insignificante e penalmente irrelevante o furto de que os miseráveis são vítimas. Sim, porque quem mais além dos miseráveis possui coisas insignificantes?”.
Medina escreveu que, “por óbvio, o furto de R$0,15 não gera considerável ofensa ao bem jurídico patrimônio. Conduta sem dúvida reprovável, imoral, mas distante da incidência do Direito Penal”. Seguindo o seu voto, a Sexta Turma do STJ concedeu o habeas e absolveu o acusado.
Furto qualificado pela escalada de muro
Em setembro de 2010, Antônio Luís pulou o muro do vizinho, entrou no quintal e já separava alguns objetos quando foi descoberto. Fugiu levando apenas uma colher de pedreiro avaliada em R$ 4. Foi condenado a dois anos e oito meses de reclusão em regime inicial fechado. O juiz de primeira instância registrou que o réu já fora beneficiado, em outro processo de furto, com o princípio da insignificância: “Mesmo assim, voltou a delinquir, demonstrando que não está apto ao convívio social ou às benesses legais”.
Negado recurso no Tribunal de Justiça de São Paulo, foi apresentado pedido de habeas ao STJ. O relator do processo, ministro Sebastião Reis Júnior, afirmou que não havia como concluir pela “ausência de interesse estatal na repressão do delito” ou pela “mínima ofensividade da conduta de quem pula o muro da residência de outrem para nela ingressar e de lá subtrair uma colher de pedreiro”, sendo que o muro tem 2,5 metros de altura, “o que evidencia uma maior ousadia do paciente”.
O relator lembrou que, em casos semelhantes – furto qualificado pela escalada –, o Superior Tribunal de Justiça tem afastado a aplicação do princípio da insignificância. Recomendou que o HC fosse negado. A ministra Maria Thereza de Assis Moura alegou que a colher de pedreiro foi devolvida, não tendo havido prejuízo material para a vítima. Lembrou ainda que a jurisprudência do tribunal diz que a existência de maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso não é empecilho à aplicação do princípio da insignificância. Foi voto vencido. A Sexta Turma não concedeu o habeas.
A penosa embaixo do braço
De 2010 até 2016, nove furtos de galinha e mais duas tentativas chegaram ao STJ. Num deles, em fevereiro de 2006, em São João Nepomuceno (MG), o objeto do crime era apenas uma galinha caipira, avaliada em R$ 10. Sidnei Nascimento entrou no quintal do vizinho e saiu com uma “penosa” embaixo do braço, como diz a acusação. Acabou preso em flagrante pela Polícia Militar, que fora acionada. Foi condenado a um ano de reclusão, em regime inicial aberto, pena substituída por restrição de direitos. A condenação foi confirmada pelo Tribunal de Justiça, mas o STJ concedeu o habeas corpus e absolveu o acusado em maio de 2010.
Leia também: Por que o STF perde tempo com temas irrelevantes
O roubo de quatro galinhas avaliadas em R$ 40 chegou ao Supremo em setembro de 2013, na forma de agravo regimental. Reincidente, o autor do furto, Fernando Ferreira, havia sido condenado na primeira instância a um ano de reclusão em regime inicial semiaberto.
No seu relatório, o ministro Luiz Fux abordou a questão da reincidência. “O paciente é conhecido – consta na denúncia – por ‘Fernando Gatuno’, alcunha sugestiva de que se dedica à prática de crimes contra o patrimônio”. Acrescentou que “a quantidade de galinhas furtadas é apta a indicar que o fim visado pode não ser somente o de saciar a fome”.
Fux votou pela negativa do agravo regimental. A ministra Rosa Weber divergiu: “Com todo respeito, eu o provejo. Para mim, configuraria atipicidade de conduta”. O ministro Luís Roberto Barroso afirmou que, em situação normal, também tenderia a tratar como crime de bagatela, mas observou que as decisões de primeiro grau, de segundo grau e do STJ eram convergentes. O ministro Marco Aurélio Mello completou, irônico: “Não foi pelo fato de as caipiras estarem valendo mais do que as de granja”.
Chocolate é o objeto do desejo
O produto mais procurado nos crimes insignificantes é o chocolate em barra. Aparece em pelo menos 60 dos casos analisados pela Gazeta do Povo, na maioria das vezes isoladamente, mas em alguns casos aparece juntamente com outros produtos como shampu, desodorante, barras de cereal, balas de goma. O valor do furto variou de R$ 8 a R$ 164. Quase a totalidade dos casos parou no STJ.
Em outubro de 2007, Diogo da Silva tentou furtar cinco barras de chocolate de um supermercado. Foi condenado a um ano e quatro meses de reclusão. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais negou o recurso apresentado. O STJ reconheceu a insignificância da conduta e extinguiu a pena, mas a defesa do condenado não ficou satisfeita. Recorreu ao Supremo pedindo a absolvição do acusado, em razão da ausência de crime. Ocorre que a simples extinção da pena não exclui os efeitos processuais, como reincidência e maus antecedentes. O STF então absolveu o réu e extinguiu o processo.
Oito meses por uma tentativa de furto
A tentativa de furto de uma carteira com R$ 1,80 e cartões bancários, depois restituído à vítima, em setembro de 2008, rendeu a Jairo Bomfim uma pena de oito meses de reclusão em regime semiaberto. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou o recurso que pedia a adoção do “princípio da insignificância”.
Pedido de habeas apresentado ao STJ também foi negado. Bomfim já tinha outra condenação por furto. A Corte Superior destacou a “a contumácia delitiva do agente, situação que demonstra a sua efetiva periculosidade social, exigindo a atuação por parte do Estado”.
O caso chegou ao STF. O relator do HC, ministro Ricardo Lewandowaki, afirmou que as certidões de antecedentes contidas nos autos não indicavam, com segurança, a “contumácia delitiva do paciente”.
O ministro destacou os princípios da “proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana”, lembrou que Bomfim já havia permanecido preso pelo período correspondente à metade da pena e recomendou a sua absolvição. Assim decidiu a Segunda Turma em abril de 2012.