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Lúcio Vaz

Lúcio Vaz

O blog que fiscaliza o gasto público e vigia o poder em Brasília

R$ 6,4 bilhões

Doações da Receita Federal geram receita extraordinária. Quem ganha com isso?

Jato executivo modelo British Aerospace Hawker 125,
Jato executivo modelo British Aerospace Hawker 125, similar ao doado pela Receita Federal ao Centro Estadual Paula Souza. (Foto: Reprodução/Wikipedia)

A Receita Federal doou a órgãos públicos e entidades assistenciais R$ 6,4 bilhões em bens apreendidos nos últimos 16 anos, em valores atualizados pela inflação. São bebidas alcoólicas, brinquedos, roupas, veículos e até aviões que têm origem no contrabando e na sonegação fiscal. O Centro de Tecnologia Paula Souza, do Guarujá (SP), recebeu uma aeronave avaliada em R$ 8,1 milhões em 2015. O Detran de Curitiba (PR) foi agraciado com veículos no valor de R$ 10,8 milhões em 2012. A Universidade Estadual de Montes Claros (MG) recebeu doações de R$ 8,9 milhões para seu hospital em 2015.

Os dados são publicados pela Receita Federal, mas a transparência não é completa. Muitas das doações, às vezes em valores milionários, estão na categoria “outras”. As doações de bebidas, por exemplo, estão incluídas nesse item. Na categoria “veículos”, não há informações sobre o tipo, modelo, ano e quantidade. Alguns órgãos públicos procurados pelo blog, incluindo a Presidência da República, Exército, Marinha e o Ministério das Relações Exteriores, não prestaram informações sobre as doações classificadas como “outras”.

O Cerimonial do Itamaraty recebeu doações no valor de R$ 493 mil em maio de 2019. Em agosto, a Divisão de Pessoal foi contemplada com mais R$ 100 mil. No ano passado, as embaixadas do Brasil em Buenos Aires e Assunção receberam mais R$ 72 mil. Tudo isso na categoria “outros”. A Secretaria de Administração da Presidência da República, a mesma que administra os cartões corporativos do Palácio do Planalto, recebeu três doações num total de R$ 155 mil em “outros”. Mais uma doação de “veículo” no valor de R$ 235 mil.

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O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro recebeu uma doação no valor de R$ 6,3 milhões, em dezembro de 2014, na categoria “outros”. Em maio do mesmo ano, a Capitania dos Porto de São Paulo, em Santos, recebeu doação de “veículo” avaliado em R$ 4,5 milhões. O Comando do 4º Distrito Naval, em Belém, recebeu doação de R$ 1,8 milhão no item “outros” em julho deste ano. Mais 34 unidades da Marinha receberam um total de R$ 1,4 milhão em doações com essa descrição apenas em 2018 e 2019.

O blog solicitou o detalhamento dessas doações à Marinha nos dias 17 e 21 deste mês. O Comando da Marinha não respondeu às informações solicitadas. Recomendou que, pela necessidade de pesquisa e consolidação de dados nos seus arquivos, o pedido deveria ser feito pelo Serviço de Informação ao Cidadão.

Cavalo trator, televisores, smartphones, pinturas

O Parque de Material Aeronáutico dos Afonsos, no Rio de Janeiro, recebeu doação de “veículo” no valor de R$ 2 milhões em junho de 2010. A Base Aérea de Belém foi contemplada com doação de R$ 735 mil em dezembro do ano passado, no item “outros”. Em novembro de 2017, o 1º Batalhão de Operações Ribeirinhas, em Manaus, recebeu R$ 2,8 milhões em brinquedos.

A Aeronáutica informou que o Parque dos Afonsos recebeu um cavalo trator e um reboque rodoviário, ambos usados. A Base Aérea de Belém ganhou alimentos, rádios receptores, televisores, smartphones, outros equipamentos eletrônicos, ferramentas, computadores e material esportivo. O Comando acrescentou que essas doações “desoneram os cofres públicos desse tipo de despesa”.

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O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) recebeu doação no valor de R$ 2,3 milhões em maio do ano passado na categoria “outros”. Informou que esses bens foram destinados a museus brasileiros, como prevê a Lei nº 12.840/2013. Acrescentou que já foram entregues 3,2 mil bens culturais aos museus federais brasileiros, entre eles, selos, mapas, livros, pinturas, tapeçaria, gravuras e bens paleontológicos.

A farra das bebidas

Reportagem publicada pelo blog em 2 de setembro mostrou que bebidas alcoólicas apreendidas e doadas pela Receita Federal são servidas com fartura em unidades militares durante coquetéis, solenidades e visitas de autoridades. Apenas os quartéis e comandos militares do Rio Grande do Sul receberam doações num total de R$ 2 milhões de 2011 a 2018.

O Comando da 3ª Região Militar, em Porto Alegre, recebeu um lote avaliado em R$ 100 mil em abril de 2013. Além de 333 garrafas de uísque, havia um vinho Chateau de Beaucastel no valor de R$ 1,94 mil e seis vinhos Vega-Sicilia/1998 avaliados em R$ 7,9 mil. O lote contava ainda com 410 garrafas de espumante, 200 de vinho branco seco, 100 de licor, 50 de rum, 50 de bitter e 600 de cerveja.

Para acabar com a farra das bebidas nos quartéis, o promotor militar Soel Arpini ingressou com ação civil pública na Justiça Federal em Bagé (RS) para impedir que as organizações militares das Forças Armadas comprem ou recebam bebidas alcoólicas da Receita Federal.

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Tem até autodoação

O Centro Estadual Paula Souza recebeu um veículo avaliado em R$ 8,1 milhões em dezembro de 2015. A instituição informou que se trata de um avião a jato executivo de médio porte, modelo British Aerospace Hawker 125-800. Sem condições de voo, o avião foi doado para ser utilizado como laboratório nas aulas práticas do curso técnico de Manutenção de Aeronaves, na Escola Técnica Estadual Santos Dumont, de Guarujá (SP).

Em janeiro de 2013, a Superintendência da Receita Federal da 9ª Região Fiscal doou para si mesma um “veículo” avaliado em R$ 2,5 milhões. Questionada pelo blog, a superintendência informou que se tratava de um avião turbo-hélice King Air C-90, que seria utilizado nas operações do Centro de Operações Aéreas da Receita Federal. Mas a Justiça determinou a devolução do avião ao seu proprietário mediante o pagamento de caução no valor dos tributos incidentes na importação da aeronave.

O Detran de Curitiba recebeu três doações de veículos no valor total de R$ 10,8 milhões, em 2011 e 2012, a maior delas no valor de R$ 5,8 milhões. Procurado pelo blog, o Detran não identificou as doações. Mas a Superintendência da Receita da 9ª Região informou que “as destinações de veículos de fato aconteceram”. Foram entregues 1.443 veículos em estado de sucata para realização de leilões pelo Detran.

Unidades do Exército receberam seis doações de veículos, no valor total de R$ 2 milhões, de setembro de 2018 a agosto deste ano. O Comando do Exército detalhou o que foi entregue. O 8º Batalhão de Engenharia de Marabá (PA) ficou com a maior parte – R$ 860 mil. Recebeu 6 cavalos mecânicos das marcas Volvo, Scania e Mercedes Benz, 4 reboques graneleiros e 1 caminhão aberto, além de itens menores. O 28º Batalhão de Logística de Dourados ficou com 5 carros de passeio, e o 9º Batalhão de Manutenção de Campo Grande ganhou uma camionete Hilux 2009.

Unidades do Exército receberam 26 doações no valor total de R$ 849 mil, neste ano e em 2018, com a especificação "outros". O blog questionou ao Comando do Exército o que foi doado, mas não houve resposta.

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Maiores doações

Pelo menos 20 doações ultrapassaram o valor dos R$ 3 milhões nos últimos 16 anos. A 9ª Região Fiscal, que corresponde aos estados do Paraná e de Santa Catarina, foi quem mais fez doações – R$ 1,5 bilhão. A maior doação individual foi feita à Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em dezembro de 2015, na área de equipamentos hospitalares.

Na mesma área, a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo foi contemplada com doações no valor total de R$ 15,9 milhões de fevereiro de 2018 a janeiro de 2019. O maior lote teve o valor de R$ 7,3 milhões, neste ano (veja quadro abaixo).

Quem pode receber

As doações beneficiam universidades, organizações militares, órgãos públicos federais, estaduais e municipais, incluídas as autarquias e fundações públicas, e entidades assistenciais. Empresas públicas e sociedades de economia mista não podem ser contempladas com mercadorias apreendidas.

As organizações da sociedade civil poderão repassar as mercadorias somente a pessoas físicas, nas seguintes hipóteses:  distribuição gratuita em programas relacionados às atividades-fim da organização e venda em feiras, bazares ou similares promovidos pelo beneficiário, desde que os recursos sejam aplicados em programas relacionados com as atividades-fim da organização.

As mercadorias destinadas a organizações da sociedade civil que forem adquiridas por pessoa física em feiras, bazares ou similares não poderão ser utilizadas para venda no comércio.

Doações de carros de luxo

Irregularidades em doações de bens apreendidos pela Receita Federal chegaram ao Tribunal de Contas da União (TCU). Em 2007, o tribunal analisou a doação de dois carros BMW solicitados pela Superintendência da Polícia Rodoviária em Porto Alegre. Um deles seria utilizado como veículo de representação para condução de autoridades e chefes de governo quando em visita ao Rio Grande do Sul. Já o outro BMW atenderia atividades administrativas do órgão.

O TCU concluiu que houve “desperdício do dinheiro público” porque o órgão estava “utilizando de veículos caros para o desempenho de suas funções, quando deveria usar modelos básicos mais baratos, os quais também seriam hábeis para desempenhar a mesma função”.

O ministro relator, Guilherme Palmeira, destacou que, “sem contar o montante dos recursos que poderia ter sido angariado pela União com o leilão dos mencionados veículos, o fato é que a utilização de veículos de luxo para o desempenho de atividades administrativas ou mesmo de representação não se coaduna com os princípios mais elementares da Carta de 1988, entre eles o da moralidade e da economicidade”.

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“Ingerências na destinação das mercadorias”

Em 2002, o TCU analisou representação do deputado federal Ricardo Berzoini (PT-SP) acerca de eventuais irregularidades na alienação e doação de bens apreendidos pela Receita Federal. O deputado ressaltou que, ao responder a requerimento de informações por ele encaminhado, o órgão informou que “há ingerências de toda ordem na destinação das mercadorias apreendidas”.

O relatório de auditoria registra que “chama a atenção as incorporações ao patrimônio público de veículos de valores elevados”. E citou casos de veículos avaliados em R$ 190 mil (valor atualizado) destinados a órgãos como a Procuradoria-Geral da República e a Superintendência da 10ª Região da Receita Federal – nesse caso uma Cherokee e um Ford Taurus –, além de carros de passeio no valor de R$ 145 mil entregues à Superintendência da 8ª Região.

O relatório da auditoria registra que, cotejados esses valores com os preços de automóveis classificados como de serviço, e “diante da crise fiscal por que passa o Estado brasileiro, uma questão se impõe: não seria mais econômico alienar os veículos apreendidos de valor elevado, suprindo-se as necessidades mediante a aquisição de carros de preço mais acessível?”.

“Outro aspecto a ser levado em consideração diz respeito aos custos de se manter carro de luxo, tanto no que se refere a mecânica, autopeças, seguro, combustível, que geralmente são bem superiores aos relativos a automóveis menos sofisticados”, acrescentaram os auditores.

Analisando a relação das destinações de mercadorias apreendidas, o tribunal observou doações de bebidas alcoólicas a órgãos públicos, como vinhos, uísques e outras bebidas. Foram contemplados a Presidência da República, os Ministérios da Fazenda, Relações Exteriores e Exército, a Procuradoria-Geral da Fazenda, o Departamento de Polícia Federal e vários tribunais.

O plenário do TCU recomendou que a Receita Federal examinasse o aspecto da economicidade da incorporação ao patrimônio público de automóvel apreendido de valor elevado destinado ao uso como “veículo de serviço”, mas decidiu “não conhecer” a representação quanto ao pedido de investigação das doações de bens apreendidos pela Receita Federal em todo o país, “tendo em vista que o requerente não possui legitimidade para solicitar a realização de auditoria por parte deste Tribunal”.

Receita Federal diz “simplificar procedimentos”

A Secretaria da Receita Federal foi questionada pelo blog por que não informa o modelo, o ano e a quantidade de veículos doados. Respondeu que o objetivo é “simplificar procedimentos e racionalizar esforços”. Informou que são veículos terrestres, aéreos e aquáticos, tais como automóveis, motocicletas, bicicletas, tratores, caminhões, ônibus, vagões, aviões e embarcações.

Acrescentou que divulga na internet os números e as datas de cada um dos Atos de Destinação de Mercadorias. Assim, qualquer interessado poderá ter acesso à íntegra do ato onde constará a descrição completa e as quantidades dos itens destinados a cada beneficiário.

Informou ainda que o grupo de mercadorias “outros” abrange os produtos e mercadorias não classificáveis nos outros grupos, tais como produtos do reino animal e vegetal, produtos das indústrias alimentares, objetos de ornamentação e de arte, mobiliários, utensílios domésticos e ferramentas.

Questionada por que não leiloa os bens de maior valor, a Receita respondeu que sempre leiloa bens de maior valor. “O leilão é principal modalidade de destinação adotada nos últimos anos”, informa, em nota. Quadro enviado mostra que os leilões renderam R$ 2,9 bilhões de 2015 a 2019, enquanto as doações para órgãos da administração pública e entidades beneficentes somaram R$ 1,1 bilhão. Acrescentou que os números da tabela referem-se aos valores dos autos de infração.

As maiores doações da Receita Federal

(*) data de assinatura do ato de doação

Fonte: Receita Federal

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