Três anos após o fim da ditadura militar, o Serviço Nacional de Informação (SNI) monitorava os trabalhos da Constituinte de 1988 e procurava interferir no seu conteúdo. Relatório de 23 de agosto daquele ano, quando estava para começar o segundo turno de votação no plenário, mostra que o SNI tentava impor ressalvas aos dispositivos que permitiam o acesso a informações de órgãos públicos. E avisava: “A menos que o Poder Executivo resolva empregar seus meios e exercer o poder de pressão de que dispõe, a probabilidade de melhorar o texto constitucional apresenta-se nula”.
O SNI queria colocar a segurança “da sociedade e do Estado” acima de direitos individuais como acesso à informação e inviolabilidade da pessoa e da correspondência. O relatório apontava uma estratégia para o segundo turno de votação. “Há que ficar-se atento para que o que até agora foi obtido de favorável não venha a ser perdido. Particularmente, deve-se alertar as lideranças do Governo para que dispositivos que nos são caros, como a ressalva do Inciso XXXIV, do Art. 59 º, não sejam sacrificados em troca da supressão da licença-paternidade, por exemplo, num tipo de barganha que já nos prejudicou em fases anteriores”.
O inciso XXXIV do art. 59º, por exemplo, dizia que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral, que serão prestados no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. No texto final da Constituição, virou o inciso XXXIII do art. 5º, sem as alterações tentadas pelos militares.
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Sarney recebia relatórios do SNI
A Gazeta do Povo apurou que o então presidente José Sarney recebia do SNI relatórios sobre diversos assuntos, entre eles a Constituinte em andamento. Uma fonte ouvida pela reportagem afirmou que esses relatórios não passavam de um acompanhamento dos trabalhos constituintes. Muitos deles consistiam em coleta de notícias de imprensa, outros forneciam informações diretas de fontes relevantes. Os relatórios seriam sobre fatos, não sobre pessoas.
A fonte afirmou que o presidente Sarney não recebia “recomendações” de seus subordinados. Os ministros de Estado faziam análise de conjuntura, externando sua opinião de maneira franca, como é próprio do sistema democrático, disse a autoridade.
Pelo conteúdo do documento enviado, essa autoridade disse acreditar que era destinado a uso interno. Além disso, destacou que uma leitura atenta verificará que o SNI se sentia sem apoio.
A reportagem solicitou uma entrevista com Sarney, mas a sua assessoria informou que ele está fora de Brasília e só voltará à cidade no começo do próximo ano. Não haveria, portanto, possibilidade de uma resposta.
Volta do SNI?
O Serviço Nacional de Informações foi um dos órgãos estatais mais atuantes durante a ditadura militar. Era responsável por monitorar atividades consideradas subversivas em empresas, sindicatos, universidades e no próprio governo, reunindo informações e organizando contrainformações no Brasil e no exterior.
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O SNI foi extinto em 1990. Hoje, quem desempenha papel parecido é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Em entrevista recente ao site BuzzFeed, o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), pré-candidato a presidente da República, defendeu a volta do SNI, nos moldes do que operou durante o regime militar, para “trazer informações concretas e abastecer as autoridades competentes”.
O maior problema
A introdução do relatório do SNI sobre a Constituinte de 88 demonstra claramente a posição do órgão. Diz que a versão constitucional para discussão no segundo turno, “não obstante os esforços dispendidos por parlamentares dotados de perfil ideológico despido de demagogia, ainda apresenta alguns problemas para os interesses deste órgão”.
“O principal deles é a permanência do instituto do habeas-data. Este dispositivo, no entanto, não deve ser analisado isoladamente, mas em conjunto com o que assegura o direito de receber informações dos órgãos públicos”, diz o documento. O habeas-data assegura o conhecimento de informações relativas à pessoa constantes de registros de entidades governamentais ou públicas.
O SNI fazia, então, um alerta: “A combinação de ambos permite negar a informação solicitada mediante habeas-data. Mass esta hipótese não é isenta de percalços, uma vez que ao solicitante certamente caberá recurso à instância judicial, o que implicará, no mínimo, em celeuma não desejada, à qual não faltará o ingrediente emocional, sempre perturbador”.
Os militares estudavam alternativas de ação, sempre preocupados com a “esquerda”: “A inserção de ressalvas ao instituto do habeas-data, já tentada, agora não cabe, uma vez que o regimento interno da Assembleia Nacional Constituinte não mais o permite. Poder-se-ia tentar aprovação de emenda que arguisse contradição entre os dois incisos – enquanto um concede sem restrições, outro ressalva a segurança da sociedade e do Estado. Mas esta tentativa apresenta risco: o de destacar emenda suprimindo a ressalva existente, que certa mente a esquerda apresentará”.
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Eles cobravam, uma vez mais, a ação do Executivo: “A simples supressão do habeas-data, por outro lado, a menos que o Poder Executivo exerça pressões intensas junto aos parlamentares que o apoiam, não tem qualquer possibilidade de êxito”.
“O poder de pressão a seu dispor”
O dispositivo sobre inviolabilidade das comunicações dizia que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, para fins de investigação criminal e instrução processual. O relatório revela a ação dos militares também nesse assunto: “Em tentativas anteriores, pretendemos subordinar essa inviolabilidade à segurança da sociedade e do Estado, ou mesmo atenuar a limitação da redação atual. Em nenhuma ocasião obtivemos êxito; certamente não o teríamos agora, a menos que o Executivo exercesse o poder de pressão a seu dispor”.
A inviolabilidade da pessoa estava assegurada pelo dispositivo que dizia: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de uma violação”. Uma vez mais, os militares tinham outra prioridade, e faziam críticas aos constituintes por eles classificados de “democratas”: “Fizemos tentativas para ressalvar o interesse maior da sociedade e do Estado e não obtivemos êxito. Nem o obteríamos agora, diante da estarrecedora e empedernida ignorância demonstrada pelos constituintes democratas quanto a assuntos como espionagem, apropriação de patentes, ou mobilização da opinião publica, entre outros”.
Na sua conclusão, o relatório detalhava a estratégia de atuação no segundo turno. “As Normas Reguladoras do Segundo Turno, indicam que o presidente da Mesa, Ulysses Guimarães, fará todo o empenho para que o processo de votação se realize no menor espaço de tempo possível. Para isso, a exemplo do que ocorreu no primeiro turno, serão estimulados os acordos de lideranças (será admitida a votação simbólica de emendas que corrijam omissões, erros ou contradições)”.
“Pode-se, assim, inferir que neste segundo turno os acordos entre os líderes terão maior peso específico, inclusive porque a afluência de parlamentares será menor, diante das campanhas eleitorais que se iniciam em todos os municípios brasileiros. Essas considerações evidenciam que neste segundo turno serão menos eficientes as ações de “lobby” sobre parlamentares comuns, enquanto a cooptação de lideranças assume significado especial para o êxito de qualquer tentativa de aperfeiçoar o texto constitucional”, conclui o documento.
Apesar dos esforços dos militares para limitar o acesso do cidadão a documentos em poder do Estado, é justamente esse dispositivo que permite hoje que se tenha acesso a registros como esse relatório do SNI, elaborado num momento em que o país começa a reconstruir o Estado democrático de direito.
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