As áreas reservadas por mineradoras para pesquisa e lavra em terras indígenas e no seu entorno somam 37 milhões de hectares, ou 370 mil quilômetros quadrados – o equivalente ao território do estado do Mato Grosso do Sul e próximo ao de países como o Paraguai. Isso também representa 32% do total das terras indígenas do país. As empresas aguardam a regulamentação pelo Congresso Nacional da mineração em áreas ocupadas por índios para iniciar a pesquisa e a lavra em grande escala.
A empresa com maior área reservada para pesquisa, a Mineração Silvana, conta com 6,5 milhões de hectares – quase a totalidade para ouro. São 734 áreas distribuídas em seis estados, a maioria no Norte e no Centro-Oeste. Em segundo lugar está a Vale S/A, com 2,1 milhões de hectares, sendo 1,8 milhão para ouro. São 223 áreas em sete estados, quase a totalidade no Pará. (veja relação das empresas que contam com mais de 200 mil hectares).
O mineral que desperta o maior interesse das mineradoras é o ouro, com um total de 18,5 milhões de hectares reservados para pesquisa, seguido de cobre, cassiterita, chumbo e estanho. Na divisão por estado, a liderança é do Pará, com 18,3 milhões de hectares, seguido do Amazonas, com 9,1 milhões.
Impressiona a concentração das áreas nas mãos de poucas empresas. As cinco maiores somam 12 milhões de hectares. São 1.345 áreas de um total de 5.331. As 20 maiores mineradoras somam 19 milhões de hectares. Todos os dados foram levantados pela Gazeta do Povo a partir da base de dados do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
Polêmica
O ponto mais polêmico do projeto de lei 1.610/1996, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), é a validação dos requerimentos de pesquisa em terras indígenas apresentados antes da promulgação da Constituição de 1988. Levantamento feito pela reportagem mostra que a soma da área desses requerimentos é de 14,5 milhões de hectares. Mas as mineradoras querem mais. Desejam validar todos os pedidos apresentados até a data de sanção da lei que vai regulamentar a atividade.
A Mineração Silvana, por exemplo, apresentou todos os seus requerimentos após a promulgação da nova Constituição, em outubro de 1988. No caso da Vale, 90% das áreas foram reservadas após essa data.
A posição das mineradoras é apresentada pelo diretor de Assuntos Minerários do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Marcelo Ribeiro Tunes, geólogo e diretor-geral do DNPM de 2001 a 2003. “O projeto aprovado no Senado prevê exatamente que os requerimentos anteriores à Constituição de 88 sejam mantidos. Nós somos a favor dessa posição e até pensamos que poderia contemplar um pouco mais. Achamos que isso deveria ser considerado até a promulgação da lei”. Ele afirma que essa tese tem bom apoio no Congresso.
A validação dos requerimentos é contestada por Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). “A proposta do Jucá exclui na prática esses requerimentos da própria regulamentação que ele propõe. Ao excluir os requerimentos arquivados, você praticamente torna essa lei letra morta. Então, a lei vai dizer respeito a quê, se vai validar esses requerimentos que cobrem uma extensão absurda? Não precisa de uma lei para validar o que está no cartório do DNPM”, afirma o ativista dos direitos dos povos indígenas brasileiros.
Última fronteira
Questionado sobre os motivos da existência de uma área tão imensa reservada para mineração em terras indígenas, Marcelo Tunes faz uma cronologia dessa atividade. “Houve um pico desses requerimentos num período de três ou cinco anos antes da Constituinte. Basicamente porque foram divulgados resultados muito importantes dos levantamentos do projeto Radam”. Ele se refere ao projeto Radar da Amazônia, criado pelos militares em 1970 para coletar dados sobre recursos minerais, solos, vegetação, uso da terra e cartografia da região.
O diretor do Ibram acrescenta que surgia também a possibilidade de novos mercados. “O Brasil e a Amazônia eram considerados naquela época como a última fronteira da mineração. Então, as empresas, para garantir a possibilidade de encontrar jazidas, até porque tinham pouco conhecimento, requeriam grandes áreas”. Tunes lembra ainda uma emenda à Constituição que abriu o país às empresas com controle de capital estrangeiro, em 1996. Surgiram mais requerimentos de pesquisa em massa.
A terra é dos índios?
Questionado se as terras indígenas são propriedades dos índios ou da União, o diretor do Ibram responde prontamente: “Não. As terras indígenas, isso está claramente explícito na Constituição, são arroladas entre os bens da União, assim como os recursos minerais. Aos índios, é assegurada a ocupação desses territórios, o usufruto dos seus recursos, aonde se encontram, inclusive, os bens minerais. E todos nós, o setor privado, representado pelo Ibram, achamos isso perfeitamente justo”.
O projeto de lei aprovado no Senado e atualmente em tramitação na Câmara prevê a possibilidade de a comunidade indígena vetar o acordo de exploração do seu subsolo, mesmo com a aprovação do Congresso Nacional. Seguindo o mesmo raciocínio, Tunes contesta essa decisão. “Eu acredito o seguinte: em se tratando de um bem da União, a gestão desse bem deve ser feita pela própria União. A decisão sobre a exploração de uma determinada área cabe à União. E eu considero muito adequado que seja pelo Congresso Nacional. E acredito que não seria o caso de ter um veto por parte dos povos indígenas”.
Santilli contesta o representante das mineradoras. “Se ele está falando isso em nome do Ibram, o instituto retrocedeu em sua posição. Pelas próprias características da atividade, que pressupõe uma permanência por um longo período, a concordância da comunidade indígena afetada é imprescindível do ponto de vista da segurança do próprio empreendimento. Você teria uma situação de permanente conflito nessa área. À revelia da comunidade, só se fosse um bando de garimpo”.
O fundador do ISA afirma que o setor da mineração está dividido. “Por que não há essa regulamentação, passados 30 anos da Constituinte? Há uma disputa de interesses. Cooperativas de garimpo travestidas de empresas e empresas propriamente ditas. Isso é o que paralisa o processo legislativo. O fato é que o próprio setor não tem consenso sobre o assunto”.
Vale
Procurada pela reportagem, a empresa Vale respondeu que “não desenvolve nenhuma atividade de pesquisa ou lavra em terras indígenas. A empresa possui processos minerários, a grande maioria em fase de pedido de autorização de pesquisa. Estes requerimentos são anteriores à demarcação das terras indígenas. Cabe reforçar que a Vale segue rigorosamente a lei que rege o aproveitamento dos recursos minerais no país, e aguardará a regulamentação das atividades em terras indígenas, ainda em discussão no Congresso Nacional”.
A Vale também prestou esclarecimentos sobre o relacionamento com povos indígenas: “Por ser uma empresa de grande porte e que possui ampla inserção territorial, a Vale considera o relacionamento com comunidades como um dos aspectos críticos de sua atividade. Desta forma, a exemplo de outras comunidades, mesmo não minerando dentro de terras indígenas, mantemos interface com povos indígenas próximos das áreas onde atuamos”.
“A relação da Vale com os povos indígenas é pautada pelo respeito à cultura local e pela valorização da diversidade. O relacionamento é realizado por equipe especializada, com foco no etnodesenvolvimento das comunidades. O apoio aos povos indígenas se dá por meio de projetos com foco em segurança alimentar, saúde, geração de renda e fortalecimento das cadeias produtivas, fortalecimento institucional e cultural, além de proteção territorial. Assim, sempre respeitando a legislação vigente, a empresa busca estabelecer um relacionamento positivo, construtivo e de confiança mútua, baseado no respeito à especial ligação desses povos com seus territórios”, conclui a nota enviada à Gazeta.
As demais empresas procuradas pela reportagem não quiseram se manifestar sobre a regulamentação da mineração em terras indígenas. Algumas indicaram o Ibram como sua representante.
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