Milhões de bolsas de plasma foram perdidas por falhas no armazenamento| Foto: José Aldinan
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Em 15 anos, a Hemobrás recebeu R$ 1,9 bilhão do governo federal para construir uma fábrica de hemoderivados. Mas até agora executou apenas 58% das obras. A estatal tem hoje um capital social de R$ 1,2 bilhão e uma dívida de R$ 876 milhões – 75% em moeda estrangeira. Sem a fábrica para processar o plasma que resultou de doações, foram perdidas 2,7 milhões de bolsas desde meados de 2017, somados os estoques da Hemobrás e das unidades estaduais de coleta e armazenamento.

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A ideia da fábrica surgiu no primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, com o objetivo de enfrentar os cartéis internacionais de produção de hemoderivados – medicamentos para hemofílicos. Foi criada em 2005 e começou a receber recursos em 2006 – R$ 13,7 milhões. Em todo o governo Lula, foram R$ 364 milhões (os valores anuais foram atualizados pela inflação). Nos mandatos de Dilma Rousseff, mais R$ 1 bilhão foi injetado na estatal. No governo Michel Temer, os aportes financeiros somaram R$ 450 milhões.

Em 2009, as obras foram paralisadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) devido a irregularidades nas licitações e contratos. Mas foram retomadas no ano seguinte. A empresa também foi afetada pela descontinuidade dos repasses do governo federal em alguns anos e pela Operação Pulso, da Polícia Federal, deflagrada em dezembro de 2015 para apurar a existência de organização criminosa que atuava na estatal por meio de fraudes em licitações e contratos.

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Em 2018, auditoria externa feita pela Audimec alertou para a “exposição patrimonial” e corrosão do seu patrimônio líquido. A auditoria dizia que, apesar do êxito das medidas de redução de despesas e expansão de receitas, a variação cambial figurava como principal agravante na causa do resultado negativo apurado em dezembro de 2018 (R$ 414 milhões), que representava uma corrosão de aproximadamente 35% do capital social. “Aludida situação sinaliza para a necessidade de adoção de medidas protetivas contra as variações cambiais”, concluiu a auditoria.

A transferência de tecnologia do Laboratório Francês de Biotecnologia (LFB) foi paralisada em 2016 em consequência de atrasos na construção da fábrica, que impactaram nas ações programadas, culminando com a desmobilização do LFB, segundo registro de auditoria interna feita no ano passado. Em 2019, com a retomadas das obras civis, um acerto de contas determinou a continuidade da transferência de tecnologia.

As causas do atraso, segundo o MP

Em representação apresentada ao TCU em abril deste ano, o procurador de Contas Marinus Marsico responsabiliza também o Ministério da Saúde pelo atraso na implantação da fábrica: “Lamentavelmente, as providências adotadas pelas diversas gestões, passadas e presente, do Ministério foram unânimes em não só prejudicar, mas ainda quase inviabilizar o projeto Hemobrás”.

Ele citou como exemplos o congelamento em reais dos repasses à Hemobrás para a compra dos medicamentos (comprados em dólares), “causa fundamental de um gigantesco déficit patrimonial naquela estatal”; a compra em paralelo de hemoderivados tecnologicamente ultrapassados, “reduzindo proporcionalmente os repasses a essa empresa, deixando-a praticamente insolvente”; e a demora no repasse de recursos à Hemobrás para a compra dos remédios essenciais.

O procurador citou ainda “a intenção de determinada gestão passada do Ministério de construir, sem licitação, outra fábrica de hemoderivados em localidade que, coincidentemente, era a base eleitoral do então Ministro, em condições técnicas e financeiras altamente prejudiciais ao interesse e às finanças públicas, com o consequente fechamento da Hemobrás”. Ele se referiu ao ex-ministro e hoje deputado federal Ricardo Barros (PP-PR).

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A perda de milhões de bolsas

Em 2016, a Hemobrás fazia a gestão do plasma nacional para o Ministério da Saúde. Diante das dificuldades enfrentadas, informou ao ministério que não tinha mais condições de manter a atribuição. Mas a verdadeira intenção da Hemobrás, segundo relato do procurador Marinus, era que o Ministério da Saúde contratasse diretamente uma empresa para processar e transformar o plasma em hemoderivados, permanecendo a estatal com a gestão do plasma. Em janeiro de 2018, o ministério aceitou a contratação direta da Hemobrás para o gerenciamento do plasma, mas o impasse se estendeu até 2020.

“Omitiu-se o Ministério em cuidar do plasma quando aceitou para si a responsabilidade, e omite-se, igualmente, em devolver a atribuição à Hemobrás. A propósito, desde o final de 2016, todo o plasma brasileiro excedente do uso transfusional coletado e armazenado não é enviado para beneficiamento industrial em hemoderivados por ausência de contratação de empresa fracionadora”, relatou o procurador.

Segundo informações da Hemobrás, somente em seu próprio estoque 156 mil bolsas de plasma perderam a validade no período entre abril de 2017 e fevereiro de 2020. A estatal estima ainda que mais 321 mil bolsas de plasma terão suas validades expiradas até dezembro de 2020 e as outras 200 mil entre janeiro e outubro de 2021.

Somados os estoques da Hemobrás e das unidades da Hemorrede, entidade que reúne órgãos encarregados da coleta e armazenamento de plasma, a estatal estima que, desde meados de 2017, 2,7 milhões de bolsas de plasma (597 mil litros) se tornaram inviáveis para fracionamento porque a cada dia, novas bolsas de plasma estragam ou não podem ser armazenadas por falta de espaço. A perda anual estimada vai de R$ 821 milhões a R$ 1,4 bilhão nos últimos seis anos, em derivados de plasma que deixaram de ser produzidos.

Números ainda maiores na Anvisa

Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que mantém o Sistema Nacional de Informação da Produção Hemoterápica, os números são ainda maiores. Houve o seguinte descarte anual, de bolsas de plasma nos últimos três anos: 2,6 milhões em 2018, 3,4 milhões em 2017 e 3,4 milhões em 2016, de acordo com dados repassados ao TCU.

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“Em suma, embora os dados dos diversos órgãos apontem certa divergência numérica, todos eles são unânimes em apontar um assombroso, injustificado e absurdo desperdício de plasma sanguíneo”, diz Marinus. “O prejuízo econômico é irrecuperável. Mas o caso não se resume em mera perda de dinheiro, mas em vidas. Cabe agora ao Ministério Público acionar o aparato estatal em busca da possível responsabilização dos agentes públicos e políticos que deram azo ao vergonhoso episódio”.

O procurador propôs que fossem adotadas pelo Ministério da Saúde providências destinadas a evitar a continuidade das perdas de plasma estocado por expiração da validade e por impossibilidade de armazenamento, atentando para a necessidade de contratação dos serviços de fracionamento para dar vazão aos estoques daquele material; além da adoção de medidas administrativas para a retomada dessas atividades pela Hemobrás, comprometendo-se em recomprar os produtos daquela estatal em caráter prioritário para atendimento ao SUS.

O “avanço” das obras

Questionada pelo blog, a Hemobrás informou o andamento das obras da fábrica em Goiana (PE). De um total previsto de R$ 1,14 bilhão, foram executados R$ 666 milhões (58% do total). Mas a estatal descobriu, muitos anos após a sua criação, que precisaria também de uma fábrica de medicamentos recombinantes (biotecnológicos). A segunda fábrica será construída pela multinacional Baxalta, que fará também a transferência de tecnologia. O empreendimento prevê investimentos privados de até US$ 250 milhões e capacidade de produção para abastecer 100% da demanda do Brasil, diz a estatal. Dos R$ 963 milhões previstos, foram aplicados R$ 50 mil (0,01% do total).

A Hemobrás também informou as suas atividades enquanto as fábricas não ficam prontas: supervisão das obras civis da fábrica de hemoderivados, preparação para instalação dos equipamentos e retomada da gestão do plasma, a partir da edição da Portaria 1.710, de 8 de julho de 2020, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre o fornecimento do plasma para a produção de medicamentos hemoderivados, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A estatal acrescenta que já realiza a distribuição de medicamentos recombinante ao SUS por meio dos hemocentros, hospitais e centros de saúde do país.

Sobre a dívida da empresa, a estatal disse que, “como o passivo em dólar se encontra parcelado anualmente até 2024 e todas as aquisições de 2020 estão protegidas por operações de Hedge, a saúde financeira da Hemobrás não será comprometida”.

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"Operação Pulso paralisou a estatal"

Citado pelo procurador como um dos responsáveis pelos atrasos no projeto da Hemobrás, Ricardo Barros, que exerceu o cargo de ministro de maio de 2016 a 2018, citou a Operação Pulso: “Foram cumpridos 28 mandados de busca e apreensão, e três integrantes da empresa foram afastados. No prédio onde morava o ex-presidente caíram mochilas de dinheiro”.

Segundo Barros, “por força da operação pulso a Hemobrás foi praticamente paralisada, e assim permaneceu por praticamente dois anos, até que tudo fosse inventariado, atualizado e as responsabilidades contratuais e técnicas fossem apuradas”.

Ele disse que deu início à reestruturação da empresa. Em 2017, o ministério retirou da Hemobrás a responsabilidade de gerir o processamento do plasma. “O plasma era fracionado pela francesa LFB, que detém o contrato de transferência da tecnologia para Hemobrás e, por sinergia, também realizava o fracionamento. Mas, por conta das restrições impostas pela agência francesa e pela da Anvisa, a empresa foi impedida de fornecer e comercializar os produtos no Brasil”.

“O plasma é do Brasil, não de uma empresa”

Segundo Barros, “trazer a responsabilidade da governança do plasma ao MS antes de mais nada foi para cumprir a obrigações constitucionais. O plasma é do Brasil, não de uma empresa, mesmo que pública. Até por questões estratégicas, cabe ao MS o estabelecimento das políticas e da destinação do plasma”.

O ex-ministro acrescentou que, considerando a interdição da LFB, o acumulo de plasma estocado e por força da operação pulso, o ministério lançou editais internacionais para o fracionamento. Mas as licitações resultaram desertas. Em uma delas o preço apresentado foi muito acima dos limites estabelecidos pelo ministério. Barros destacou, ainda, que, em 30 de dezembro de 2017, destinou R$ 297 milhões para concluir a planta de plasmáticos, a unidade industrial onde se realiza o fracionamento do plasma.

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Barros disse ainda que, “na Hemobrás que nada produz, depois de mais de seis anos de atraso nos cronogramas, 100% do investimento é da União. Se e quando terminar, terá investido R$ 1,3 bi sem produzir uma única gota de hemoderivado e receberá uma tecnologia ultrapassada, antiga. Um projeto moderno hoje demandaria menos da metade do investimento e mínimos riscos de potencial contaminação”.

Questionado sobre a representação do procurador Marinus, o Ministério da Saúde afirmou que “não houve prejuízo na atenção hematológica quanto ao uso de medicamentos hemoderivados e não há relatos de desabastecimento de fatores de coagulação para o atendimento para esses pacientes. Todos os apontamentos serão respondidos ao TCU no prazo determinado pelo órgão”.

Fizemos contato com a assessoria do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e informados o conteúdo da reportagem. Não houve resposta até a sua publicação.